Dia 22 de julho de 2025
O campo tem seus mistérios que só quem vive sabe. Num dia, a chuva vem com força, derruba pontes, arrasta sonhos. A gente corre, junta madeira, improvisa, resolve o suficiente pra passar. No outro, o céu abre de novo suas comportas e leva tudo embora mais uma vez. Foi assim até entendermos que o remendo não bastava. Tivemos que erguer de concreto, sólido, pesado, duradouro.
É, amigos, o campo também ensina. E suas lições são simples e diretas, como as palavras de Jesus: “Todo aquele que ouve estas minhas palavras e as pratica é como o homem prudente que construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos, e deram contra aquela casa, e ela não caiu, porque tinha seus alicerces na rocha. Mas quem as ouve e não as pratica é como o insensato que construiu a sua casa sobre a areia. Caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos, e deram contra aquela casa, e ela caiu. E grande foi a sua queda” (Mateus 7:24-27).
Assim também é com a vida. O campo cobra firmeza, pede raiz, não aceita alicerce fraco.
Vó jamais pensou receber um presente como o que ganhou no dia anterior. Um irmão desaparecido há mais de trinta anos voltando à sua frente. Era coisa de outro mundo. Dona Loudes, por sua vez, teria deixado passar, guardado a sete chaves o que sente por Tião, não fosse a língua solta de Júlia, que na cozinha transformou silêncio em revelação. Mas o campo é assim, basta uma panela de ferro chiando no fogo e uma Júlia risonha para trazer à tona verdades que o tempo insistia em esconder.
A noite que se seguiu foi de relatos, histórias que não foram vividas juntos como irmãos, mas que agora tinham a chance de preencher os vazios que a ausência cavou. Histórias partidas, lembranças reconstruídas com risos e lágrimas, como se o campo quisesse concertar em uma só noite três décadas de distância.
Um amanhecer diferente
O dia amanheceu diferente. A noite havia sido de chuva grossa, daquelas que fazem a terra exalar um cheiro forte de barro. Quando abri a janela, encontrei o céu coberto por um manto de nuvens pesadas, cinzentas, que mal deixavam ver alguns metros à frente. O ar estava úmido, o chão encharcado. Pela primeira vez em vinte e dois dias, acordei e a cozinha estava em silêncio.
O cheiro habitual do café passado no coador de pano, do bolo de fubá ainda quente, havia dado lugar ao vazio. Nem o rangido dos pratos, nem o tilintar das colheres, nem as conversas baixinhas de vó e dona Loudes. Tudo estava calmo demais, e o silêncio, naquele momento, parecia um anuncio de que algo havia acontecido.
— Bom dia, Marina. Onde estão todos? Perguntei ao ver que só ela estava na casa.
Ela havia acabado de acordar. Vestia uma camisola rosa de flores brancas, e contra a luz fraca da janela, a peça denunciava as formas delicadas de seu corpo. Marina era dessas mulheres que não se preocupava com os julgamentos dos outros. Vestia-se do jeito que gostava, para se sentir bem, e não para agradar olhares. Ainda assim, parecia se desculpar quando percebeu minha atenção involuntária.
— Oi, Mano. Bom... desculpa a roupa. Disse, colocando rapidamente as mãos sobre o peito. — Eu pensei que você tivesse ido com os outros. A voz, arrastada, denunciava tanto sono quanto preocupação.
Sentei-me à mesa de café ainda posta, embora intacta.
— Fui dormir logo depois que todos saíram. O que aconteceu?
Ela suspirou fundo, puxando uma cadeira para se sentar diante de mim.
— Foi o Tião, Mano...
Meu coração apertou.
— O que aconteceu com Tião? Perguntei, já esperando o pior.
Marina baixou os olhos antes de responder.
— Sabe aquele momento em que você olha pro céu, vê o sol bonito e pensa que não precisa levar guarda-chuva? Então, você sai, e de repente, a chuva cai. Foi assim.
Naquele instante, minha mente foi longe. Lembrei do homem que me ajudou com a mochila puída no dia em que desci do ônibus. O mesmo homem que chorou quando perdeu o amigo Capitão, o cachorro valente que enfrentou a onça. O mesmo Tião que teria matado a fera com as próprias mãos, se fosse preciso. O mesmo Tião que, na noite anterior, quase soube do amor escondido de dona Loudes.
Esse homem, que toca viola como ninguém, que canta versos de vaqueiro toda manhã quando vai peando as vacas pra tirar o leite. Hoje, justo hoje que eu ia contar a história de vida dele, pode ser que tenha que escrever a história finda desse homem.
Olhei pela janela outra vez. O tempo permanecia fechado, as nuvens arrastadas pelo vento baixo, quase lambendo a copa das árvores. Era um dia estranho, pesado, como se o campo também sentisse.
Repente da quarta noite
E, como se fosse inevitável, minha memória voltou para a quarta noite na fazenda. Foi naquele dia que eu e Tião puxamos a viola juntos, embalando a varanda iluminada apenas pela lua. Ele me ensinou os versos que os vaqueiros guardam no peito, simples e valentes.
Hoje, deixo aqui, em forma de repente, o que Tião me ensinou naquela noite:
O Vaqueiro Sem Valor
Patrão dizia com riso,
“Esse homem não tem talento,
Só serve pra levar gado,
E me dar aborrecimento.”
Mas o campo guarda segredos,
E os revela com o tempo.
Na pista da vaquejada,
Se ouviu toada de dor,
Era o vaqueiro sem nome,
Que o patrão nunca notou.
Mas no aboio da sela,
Ele mostrou seu valor.
O gado corria ligeiro,
Levando poeira no chão,
O vaqueiro vinha firme,
Com coragem e coração.
Na última curva da cerca,
Ele pegou o boi na mão.
E o povo todo gritava,
“Esse sim é campeão!”
Enquanto o patrão calava,
Com vergonha na razão.
Pois o homem que desprezava,
Era agora a admiração.
Autor: Tião
Tião recitou este
Poema em aberturas
De pequenas vaquejadas
Naquela noite, o som da viola soou no terreiro, e Tião, com seu jeito simples, sorriu satisfeito. Hoje, não sei se vou contar a vida ou a despedida dele, mas sei que no campo, até a dor se canta em forma de repente.
-------
Confesso que neste dia pensei em não escrever mais até o dia 31. São tantas alegrias e de repente um sorriso perde o brilho.
Mas pedido eu continuei.
Capítulo - 21 - 22 - Capítulo 23