Corvo do Silêncio
"Onde o mundo grita, o Corvo do Silêncio escreve, e no som das palavras, a alma desperta."
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Textos

Dia – 21 – Cheiro de Terra Molhada

O Presente Do Campo Veio Com O Sol E O Dia

 

21 de julho de 2025

Dia 21 de julho. Para vó, essa data era mais que um simples risco no calendário. Era o dia em que celebrava sua vinda ao mundo, um marco que, como ela mesma dizia, só acontece uma vez para cada ser humano. Morrer, segundo as histórias de Tião, podia-se morrer muitas vezes, de susto, de tristeza, de saudade. Mas nascer. Nascer é só uma vez.

 

O relógio pendurado acima da porta da sala marcava 11h45. Os ponteiros pareciam mais ansiosos que as próprias pessoas, e o som do “tic-tac” misturava-se ao burburinho de vozes que já começava no terreiro. Os convidados começavam a chegar, cada qual trazendo consigo histórias, risadas e pratos que carregavam o tempero da tradição.

 

A fazenda de Pedro, onde a festa acontecia, ficava logo na segunda porteira da vicinal. Ao todo, eram dez propriedades distribuídas ao longo de quase noventa quilômetros de estrada de chão. A de Pedro, de tamanho médio, era conhecida como “Fazenda Três Tombos Só” nome que ele carregava com orgulho, lembrança das vezes em que caiu tentando domar um mesmo cavalo arisco. Em grandeza, estava na quinta posição entre as dez, mas em hospitalidade, todos diziam que era a primeira.

 

Hoje, porém, ninguém se importava com números. O assunto era vó.

E, para evitar qualquer confusão, até o bode Chico estava preso no seu cercado, resmungando baixinho, como se soubesse que perderia a chance de aprontar.

 

O sol, já perto do meio-dia, reinava sobre o campo. Os raios batiam no terreiro, refletindo na terra vermelha e dando ao cenário um brilho quase dourado. O calor subia da terra como se fosse fumaça, fazendo a copa das mangueiras lançar sombras generosas. Parecia até que a natureza tinha se preparado para que o dia fosse só de festa, sem espaço para tristeza.

 

A Cozinha em Movimento

 

As pessoas chegavam trazendo de tudo, uma panela de galinha caipira ensopada, embrulhos de pamonha ainda quentinhas no papel de milho, garrafas de cachaça artesanal, rapadura cortada em grandes blocos, queijo de coalho fresco e até um pote de doce de leite com canela (meu favorito na fazenda). As mulheres iam direto para a cozinha, onde o cheiro já era de festa, e os homens se ajuntavam perto das mesas, ajudando ou fingindo que ajudavam, mais interessados na prosa.

 

— Vamos começar a servir! Disse vó, com aquela voz que já conhecemos.

Distribuiu as tarefas com a calma de quem sabia que cada detalhe estava no seu devido lugar.

 

— Júlia, veja o pato.

— Tá no capricho, vó! Respondeu ela, orgulhosa.

— Juliana, e o arroz?

— O arroz e o feijão de corda já estão prontos.

— Loudes, como está o porco?

Dona Loudes experimentou um pedacinho e sorriu.

— Está uma delícia.

Vó, então, se virou para mim.

 

— Mano, meu filho, sua voz doce lembrava tanto a da minha mãe que me deu um aperto no peito, ajude Tião e Pedro a arrumar as mesas. Jonas não pode, e Matheus, desde ontem, ninguém sabe por onde anda.

— Claro, vó. Mas antes… peguei uma coxinha de codorna do prato. — Uma coxinha não faz mal a ninguém.

E fui cumprir minha tarefa.

 

O Almoço

 

As mesas foram organizadas embaixo da grande mangueira, a mesma que dias atrás havia danificado a caminhoneta de Pedro quando uma galhada caiu em dia de vento forte. Agora, porém, servia de sombra, acolhendo todos em sua copa robusta.

 

O almoço foi servido como um banquete de reis, mas com simplicidade de gente do campo. O pato dourado exalava cheiro de tempero verde e alho, o arroz soltinho se misturava com o feijão de corda, o porco assado estalava a pele crocante a cada corte, e as travessas de salada de tomate, cebola roxa e cheiro-verde completavam a mesa.

 

Os donos de fazenda, suas famílias e vizinhos se reuniram em torno, falando alto, rindo, comentando sobre a colheita, sobre a chuva que parecia não querer ir embora, e até sobre as estripulias do bode Chico.

 

— Pedro, tomara que essa mangueira não queira aprontar de novo hoje! Disse Tião, arrancando gargalhadas.

— Se cair galho hoje, cai é no prato, Tião! Respondeu Pedro, mostrando a faca pronta para cortar mais carne.

 

Quando o padre chegou, trazendo consigo o terço na mão e um sorriso sereno, foi como se a festa ganhasse sua bênção oficial. Todos silenciaram por alguns instantes para a oração, e depois o barulho de talheres, pratos e conversas voltou a encher o terreiro.

 

A Tarde de Prosa

 

Depois do almoço, a tarde se alongou em prosa boa. Uns jogavam dominó na varanda, outros arriscavam uma pelada improvisada no pasto, onde a bola de couro levantava poeira a cada chute. Mais tarde teve até corrida de cavalo, aplausos e apostas de brincadeira. As moças dançavam na varanda maior, onde som vinha de uma pequena toca (Cd) tinha xote, baião e muito forró com a rainha Elba Ramalho. O campo, naquele dia, parecia respirar junto com a alegria de todos.

 

O Grande Momento

 

O relógio se aproximava das oito da noite quando todos se reuniram de volta na varanda maior. O vento já soprava mais fresco, trazendo o cheiro doce das flores do campo. Foi nesse cenário que começaram a cantar o “Parabéns” para vó.

 

Ela, que nunca gostou de balões, de surpresas nem de grandes enfeites, sorria de um jeito sereno. O que não dispensava era o bolo. E lá estava ele: um imenso bolo de cinco camadas, feito com farinha de mandioca fina, ovos de capoeira, leite fresco e cobertura brilhante de calda de jaca, que escorria pelas laterais como mel dourado. O cheiro adocicado se misturava ao do café recém passado, trazendo um aconchego que só o campo sabe dar. (Dona Loudes não quis da mais detalhes do bolo)

 

Todos comiam e bebiam quando Pedro levantou-se, pedindo silêncio. Sua voz tremeu já nas primeiras palavras.

 

— Todo mundo aqui sabe, que mãe, ou melhor, nossa vó, não gosta de presentes. Ao longo desses sessenta anos, sempre disse que o maior presente era ver os filhos com saúde.

Fez uma pausa, engoliu em seco e continuou, com os olhos marejados.

 

— Mas, ela também sempre disse que, se pudesse escolher um presente, seria reencontrar seu irmão gêmeo, que não vê há mais de trinta anos. Esse é o presente que ela gostaria de ganhar.

 

O silêncio tomou conta da varanda. Alguns já enxugavam os olhos, tocados pelas palavras. Vó, sentada na cabeceira, levou a mão ao rosto, tentando conter a emoção, mas as lágrimas teimavam em cair.

 

Pedro ia continuar quando a multidão se agitou. Olhares se voltaram para a entrada da varanda. Matheus surgia, abrindo caminho devagar, e atrás dele vinha um homem de cabelos grisalhos, pele queimada de sol, rosto marcado pelo tempo. Olhar firme e um sorriso tímido que revelava tanto nervosismo quanto esperança.

 

Matheus parou diante da mesa do bolo. O homem deu mais dois passos. O silêncio, que já existia, tornou-se absoluto.

 

Vó o encarou. Seus olhos marejados arregalaram-se, e a respiração falhou. Até que ela soltou um grito que sou vindo do fundo da alma.

 

— Meu irmão!

Levantou-se de súbito, abraçando-o com toda a força de quem esperou três décadas por aquele momento. E ali ficaram, abraçados, chorando, como se o tempo tivesse se dissolvido.

 

As pessoas ao redor choravam junto, algumas em prantos, as mais próximas de vó que conhecia a história, outras em silêncio reverente. O bolo, o café, a música, tudo perdeu importância aquele instante. O presente que vó sempre desejou estava diante dela, de carne e osso.

 

E como dizer mais do que isso? Não havia palavras, nem explicações, nem necessidade de pressa. Uma espera dessa grandeza merecia, no mínimo, meia hora inteira de abraço e lágrimas.

 

No campo, certas coisas parecem impossíveis até acontecerem. E quando acontecem, não precisam de anúncio, apenas de testemunhas. Quem esteve ali naquela noite soube que vivera algo que não se repete. Porque só o campo, com seus mistérios e sua simplicidade, é capaz de guardar um presente desses e entregá-lo na hora certa.

 

 

Capítulo – 20 – 21 – Capítulo 22

 

Corvo do Silêncio
Enviado por Corvo do Silêncio em 19/08/2025
Alterado em 22/08/2025
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