Corvo do Silêncio
"Onde o mundo grita, o Corvo do Silêncio escreve, e no som das palavras, a alma desperta."
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Textos

Dia – 20 – Cheiro de Terra Molhada

Entre Panelas e Destinos

 

20 de julho de 2025

O Almoço das Gargalhadas

 

O campo tem mistérios que poucos podem entender, e naquele dia parecia que todos eles estavam guardados no cheiro da cozinha. A casa grande respirava vida. Vó, já recuperada do susto, comandava tudo com seu jeito firme, ajeitando o lenço na cabeça enquanto dava ordens. Dona Loudes, ao lado dela, mexia no tempero do porco, espalhando alho socado, sal grosso e pimenta do reino como ritual antes de levá-la ao forno de barro.

 

Na mesa rústica, de tábuas largas e muito antiga, acumulavam-se as iguarias do almoço: um carneiro já temperado com alecrim, aguardando o braseiro; cortes de boi mergulhados em vinho e cebolas douradas; o porco gordo assando lentamente, soltando aquele cheiro que parecia abraçar a casa inteira; o pato, limpo por Júlia, ainda cheirava a fumaça do fogo onde teria seu destino e, num canto, uma travessa coberta, guardava as codornas, miúdas, mas tão bem preparadas que pareciam joias de carne macia no tempero forte.

 

— Mano, me traga aquele tacho ali. Pediu vó, apontando com o dedo enrugado, mas firme.

— Já vou, vó. Respondi. Arrastando o painelão de ferro até o fogão a lenha, que ardia vermelho, soltando estalos como se fossem tocados pelas guitarras dos Guns N' Roses.

As mulheres trabalhavam como se dançassem, uma cortava cebola, a outra socava alho, a terceira mexia as panelas pesadas, cada uma com seu ritmo, mas todas em harmonia. Dona Loudes, com a faca afiada na mão, olhou pra mim e soltou, entre risos:

 

— Agora ele é escritor, escreve tudo agora. Até o jeito da gente cortar cebola

— É mesmo! Reforçou Júlia, sem levantar a cabeça, arrancando as penas do pato com dedos rápidos. — Então escreve aí que eu sou a mais bonita daqui e ainda vou casar com um príncipe!

Ela deu uma gargalhada alta, que se fez escutar na varanda.

 

— Vai casar com o sapo, isso sim! Retrucou dona Juliana, mãe dela, que ajeitava os temperos do carneiro.

O riso foi geral. Até vó, que raramente se distraía do que fazia, deixou escapar um sorriso enquanto mexia no tacho fumegante. O calor do fogão misturava-se ao barulho das panelas e ao burburinho das conversas, fazendo daquele instante um retrato puro da vida no campo: farto, simples e cheio de alegria.

 

Segredos à Mesa

A cozinha estava tomada pela descontração. As panelas chiavam no fogão a lenha, o cheiro de tempero se espalhava pela casa e as risadas se misturavam com o estalo da lenha queimando. Júlia, sempre a mais divertida, não parava de soltar uma piada atrás da outra, provocando quem estivesse mais concentrado no trabalho.

 

De repente, largando o pato já quase limpo, ela ergueu os olhos para dona Loudes e perguntou em voz alta, com aquele ar de quem queria provocar:

 

— Dona Loudes, quando é que nós vamos comer bolo do teu casamento?

Foi como se o tempo tivesse parado por um segundo. Dona Loudes, que até então mexia firme no tempero do porco, congelou com a colher de pau suspensa no ar. O rosto, sempre tão sério, ruborizou como fogo de brasa, e ela não sabia se ria ou se ralhava. Passou a mão no avental, desviando os olhos, tentando disfarçar.

 

— Júlia! Menina, para com isso! Exclamou dona Juliana, a mãe, dando uma tapa leve no braço da filha.

Mas dona Loudes não se conteve e respondeu com a mesma delicadeza que é parte de sua pessoa.

— Esquenta não, dona Juliana. Quando ela casar com o sapo, eu como bolo!

 

A gargalhada que se seguiu quase derrubou a panela do fogão. Até eu não consegui segurar e deixei escapar o riso, enquanto todos na cozinha balançavam a cabeça diante da ousadia da moça.

Foi nesse momento que vó, erguendo o olhar por cima dos óculos, interrompeu a bagunça com sua voz firme, aquela que sempre carregava respeito:

— Pelo jeito eu vou ter que casar esses dois.

 

As risadas cessaram de imediato, como se um vento tivesse varrido o barulho da cozinha.

— Quais dois, vó? Perguntei, inocente, sem imaginar o rumo da conversa.

Ela pousou a colher no tacho e respondeu, sem pestanejar:

— Loudes, minha filha.

 

A cozinha mergulhou num silêncio denso. As facas pararam de picar, as mãos suspenderam o trabalho, e até o fogo pareceu crepitar mais baixo. Todos olharam, primeiro para vó, depois para Loudes.

— Já faz muito tempo que você gosta de Tião. Continuou vó, olhando firme para a filha que Itália lhe deu a tantos anos. — Eu me pergunto qual de vocês dois vai ser o primeiro a falar o que sente.

 

O silêncio se alongou, pesado, cheio de significados. O rosto de Loudes empalideceu. Ela mordeu os lábios, apertou o pano de prato nas mãos e tentou desviar o olhar. Os olhos marejaram rápido, denunciando aquilo que ela guardava no peito há anos.

— Minha filha, você sabe que lhe quero bem, como quero a Tião também. Então hoje, você vai falar pra ele o que sente. Disse vó, com aquela voz que não abria espaço para contestação.

 

O ar ficou espesso. Todos voltaram a seus afazeres de forma automática, como se mexer na panela ou cortar tempero fosse um refúgio para não encarar de frente a cena. Júlia, que havia começado tudo, se aproximou de Loudes devagar, abriu os braços e a abraçou forte, tentando arrancar-lhe um sorriso no meio das lágrimas.

Loudes enxugou os olhos com o avental, constrangida, mas não conseguiu esconder a emoção.

 

E foi justamente nesse instante que a porta da cozinha rangeu e Tião entrou, com o chapéu na mão e o olhar curioso. Parou na entrada, observando todos, e fixou os olhos em Loudes, que ainda estava com o rosto molhado de lágrimas.

A cena parecia saída de um destino que o campo, com seus mistérios, havia preparado em silêncio.

 

O clima na cozinha, que antes era de riso e descontração, agora parecia ter virado de repente um clima de noivado interrompido por uma notícia ruim. Dona Loudes, que ainda não tinha recuperado totalmente a compostura, se virou de leve, tentando disfarçar o rosto molhado, mas Tião percebeu. Seus olhos se fixaram nela com uma curiosidade silenciosa, como quem vê algo que não compreende por completo. Loudes, aflita, limpava as mãos no avental e virava-se para o tacho, como se o barulho das panelas pudesse esconder o que sentia.

 

Júlia, impaciente como sempre, estava com o segredo na ponta da língua. Não se conteve e começou:

— Tião...

Mas antes que dissesse mais, vó, atenta, levantou a mão com firmeza e a cortou no ar:

— Júlia, minha filha, veja se o pato já está pronto.

 

O tom não deixava espaço para desobediência. Júlia suspirou, fez uma careta, e obedeceu. O clima, que já estava denso, ficou ainda mais pesado. O silêncio tomou conta da cozinha, e apenas o estalar da lenha e o borbulhar da panela se faziam ouvir.

 

— Fale, Tião. Disse vó, pousando uma xícara de café diante dele. — A senhora tem que vir ver. Completou ele, em voz baixa, evitando encarar diretamente os outros.

Vó largou o pano de prato, enxugou as mãos e olhou para nós.

— Vocês cuidam daqui, já volto.

 

Tião fez um aceno discreto para mim, e eu logo compreendi. Levantei-me da cadeira e o acompanhei, deixando para trás aquele ambiente onde todos fingiam estar ocupados, mas o silêncio falava mais alto que qualquer conversa.

Na sala, Tião se aproximou devagar, tirou o chapéu da cabeça e, com a voz grave, contou:

— Jonas... Jonas está no hospital da cidade. Foi com Pedro.

As palavras caíram como um raio. Vó levou a mão ao peito, a respiração pareceu falhar por um instante.

 

— No hospital, meu Deus? A voz dela embargou.

Tião apressou-se em explicar, com um tom que buscava trazer calma:

— Foi um acidente pequeno, nada grave. O braço dele ficou machucado, mas Pedro está junto.

 

Mesmo assim, a aflição tomou conta de vó. Seus olhos se encheram de preocupação, e ela apertou minhas mãos como quem buscava firmeza.

— Santo Antônio há de cuidar. Falou, olhando para o alto, antes de endireitar o corpo e assumir de novo a postura de quem tinha responsabilidade sobre todos.

 

Virou-se e chamou com firmeza:

— Loudes!

Dona Loudes correu até a sala, ainda com o pano de prato nas mãos, tentando entender o que estava acontecendo.

— Cuide de tudo aqui. Já vai dar meio-dia, e os convidados estão para chegar. Vou sair com Tião e com Mano, mas volto a tempo. Prepare as mesas, organize as comidas.

Loudes baixou a cabeça, aceitando a responsabilidade. Sua voz saiu firme, mesmo que o coração estivesse abalado:

 

— Pode deixar, vó Zulmira. Vai dar tudo certo.

Mas antes de se afastar, ainda teve tempo de lançar um olhar de canto para Tião, rápido, tímido, mas cheio de coisas não ditas. Tião, percebendo, desviou o olhar para o chão, batendo o chapéu contra a perna como se fosse apenas distração.

 

— Pronto, Tião, vamos. Disse vó, erguendo a mão em direção à porta. — Mano, pegue o carro.

Assenti com a cabeça e saímos. Fui buscar o carro no terreiro, o sol já quase a pino, castigando a terra batida que brilhava com poeira seca.

Foi nesse instante que ouvimos buzinas repetidas, apressadas, soando pelo caminho. Olhamos para a estrada e vimos um rastro de poeira se levantando. Um caminhão se aproximava, balançando pelo cascalho, como se tivesse pressa de chegar.

— É Pedro! Gritei, animado.

 

O caminhão parou em frente à porteira. Pedro desceu sorridente, e logo vimos Jonas acenando da janela. O braço dele estava enfaixado e preso na tipoia, mas o sorriso largo era sinal de que, afinal, estava bem.

 

A tensão se desfez como nuvem diante do vento. Vó correu até eles, lágrimas nos olhos, e abraçou primeiro Jonas, depois Pedro, agradecendo a Deus em voz baixa. Voltando-se para a cozinha, limpou o rosto com a ponta do lenço e anunciou:

— Estava indo com Tião e Mano até a cidade, mas graças a Deus não foi preciso. Jonas está bem. Foi só um susto.

 

— Vamos preparar as mesas. Temos convidados a receber e comida para servir.

E com essa frase, devolveu vida ao ambiente. As facas voltaram a cortar, as panelas a chiar, e o cheiro de almoço de fazenda se espalhou ainda mais forte, misturado agora com o alívio que todos sentiam.

 

Capítulo – 19 – 20 – Capítulo 21

 

Corvo do Silêncio
Enviado por Corvo do Silêncio em 19/08/2025
Alterado em 19/08/2025
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