Corvo do Silêncio
"Onde o mundo grita, o Corvo do Silêncio escreve, e no som das palavras, a alma desperta."
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Textos

Dia – 19 – Cheiro de Terra Molhada

Entre o bezerro salvo, a manga rosa e a lembrança dos que ficaram

 

Dia 19 de Julho de 2025

A vida no campo, às vezes, nos dá dias que parecem bordados à mão, cada ponto tem sua cor, seu brilho, seu detalhe delicado. Hoje foi um desses. Talvez porque eu ainda sentia o peso da gripe que me deixou de cama por alguns dias, talvez porque, depois de todo o susto com a vó, tudo agora parecia mais leve, mais precioso.

 

O dia amanheceu claro, o vento morno, e a casa cheirava a café passado na hora. Pedro havia saído cedo rumo a Boa Vista, para buscar umas ferramentas na minha oficina. Eu fiquei. E como não sou de ficar parado, resolvi andar pelo campo, fazer a ronda que tanto gosto, olhar os animais, as plantações, sentir a terra nos pés e o cheiro verde que vem das folhas.

O bezerro salvo

 

O primeiro lugar onde fui foi o cercado onde está o bezerro que Capitão e Danada salvaram. É impossível não lembrar daquela noite. A onça tinha feito sua emboscada, atacando a vaca com brutalidade. O bezerro só não teve o mesmo destino porque Danada correu como raio, latindo, e Capitão, o velho amigo, lançou-se contra o felino sem medo. Aquela luta custou-lhe a vida dias depois, mas também foi o motivo de estarmos ali, hoje, cuidando de um novo amigo da fazenda.

Foto tira próximo ao local do ataque.

 

O bezerro, de pelagem clara, estava em pé. Já comia sozinho, mastigando o capim com aquele jeito manso e desajeitado. A ferida da perna sarava bem, o corte já fechado, só uma cicatriz fina. No pescoço ainda se via o ferimento mais fundo, que exigia curativo diário. Mas ele estava firme, respirando forte, cheio de vida.

 

Ao lado dele, estava Danada. A cadela parecia vigiar como quem guarda um tesouro. Quando me aproximei, abanou o rabo, mas sem levantar. O bezerro chegou perto de mim, curioso, cheirando minha mão. Passou a língua áspera no meu braço e depois voltou para o lado dela. Era amizade feita de instinto e gratidão. Uma cena bonita demais para não se guardar na memória.

O bezerro e Danada

 

O céu das dez da manhã

 

De lá, caminhei até a grande mangueira, aquela onde gosto de me sentar para escrever e quando o bode Chico deixa. Trouxe comigo um pedaço de bolo de fubá embrulhado em guardanapo, uma garrafa de café ainda quente e o caderno que me acompanha sempre.

 

O céu, às dez da manhã, estava simplesmente um espetáculo. Um azul profundo, limpo, que fazia os olhos doerem de tanto brilho. Algumas nuvens brancas e fofas passeavam devagar, como barcos em um mar sem pressa. O sol, alto, deixava as folhas da mangueira reluzentes, e a sombra que ela fazia no chão era fresca, pintada de verde e dourado.

 

Sentei-me ali, comendo o bolo, sentindo o gosto de milho e açúcar se desfazerem na boca, e pensei como é bom quando o corpo está curado da doença e a gente volta a sentir prazer nas pequenas coisas.

 

O passeio pelo campo

 

Resolvi seguir o caminho adiante, devagar, como quem saboreia cada passo. Passei primeiro pelo cercado novo das codornas. Pequenas aves, delicadas, mas de espírito arisco. Estavam bem adaptadas à nova casa, um galpão claro e arejado, feito com madeira e tela. Correndo de um lado para o outro, pareciam pequenas bolinhas vivas. Algumas se aninhavam no canto, outras bicavam o milho espalhado pelo chão. O canto delas era suave, tão diferente do som forte dos galos e das galinhas.

 

Mais adiante, atravessei a pequena ponte. Agora, de concreto. Olhei para a água correndo por baixo e me lembrei do dia em que salvamos a vaca atolada na lama. Foi uma correria, corda para cá, grito para lá, Pedro quase entrando de cabeça para ajudar. Hoje a ponte sólida era um símbolo de que aprendemos com os tombos.

 

Segui até o milharal. As fileiras de plantas, verdes e altas, balançavam com o vento, fazendo um som parecido com mar em dia de ressaca. Passei a mão nas folhas, sentindo a textura áspera, e vi que já havia espigas novas se formando, promessas de fartura.

 

Logo depois, caminhei pelo terreno que está sendo preparado para o plantio de uvas. A terra, recém-arada, tinha cheiro forte, um perfume que mistura umidade, adubo e sol. As covas alinhadas pareciam fileiras de sonhos à espera de brotar.

 

Mais adiante, vi o campo de soja, o arroz verdeando perto da parte mais baixa, a macaxeira se espalhando com suas folhas largas, e o algodão despontando tímido. Cada lavoura com sua beleza, cada uma prometendo sustento.

 

O almoço com a vó

 

Voltei para casa já com fome. E que almoço foi aquele! Vó, recuperada do susto de ontem, estava animada, cheia de energia. O cheiro do tempero vinha de longe: carne de bode guisada, macia, bem temperada, com cebola, alho e pimenta do reino, acompanhada de feijão gordo, arroz soltinho e uma farofa dourada de manteiga.

 

Antes que alguém se engane, o bode Chico não foi o protagonista desse prato. Ele está bem vivo, correndo nos arredores, aprontando como sempre. Até parecia sentir que o assunto era sobre bode, porque deu de investir contra um saco de milho encostado no curral, derrubando tudo no chão. Jonas, rindo, foi atrás para recolher.

 

Depois do almoço, vó, sentada na cadeira de balanço, contava histórias de vida. Tinha um brilho no olhar que fazia a gente esquecer qualquer preocupação.

 

Os patinhos crescidos

 

Quando voltei ao terreiro, vi os patinhos. Já não eram aqueles pequenos que nadavam na poça da chuva, mas crescidos, gordinhos, as penas ainda com aquele tom amarelado que lembrava pelúcia. Seguiam a mãe em fila indiana, mergulhando e batendo asas na água do açude. Uma cena tão simples, mas tão cheia de beleza, que fiquei parado só olhando.

 

A manga rosa

 

E aqui estou agora, de novo debaixo da mangueira. A manga rosa, doce como mel. Quando madura, sua polpa é firme, mas tão suculenta que escorre pelo queixo se a gente não tomar cuidado. A casca avermelhada e amarela parece uma pintura, e o sabor mistura acidez suave com doçura intensa. Cada mordida traz um cheiro de infância, de quintal, de pés descalços correndo na poeira, de menino criado com a vó mesmo.

 

Abri o caderno, tomei um gole do café e comecei a escrever. Escrevi sobre o bezerro salvo, sobre Capitão que se foi, sobre Danada que ficou. Escrevi sobre vó, que ainda nos ensina mais do que todos os livros. Escrevi sobre os patos, o milho, a manga, o vento, o céu.

 

E quando o sol começou a se abaixar no horizonte, tingindo tudo de dourado, fechei o caderno, guardei a caneta, segurei a garrafa de café e levantei-me. O som dos pássaros voltando para o ninho era a trilha sonora perfeita para voltar para casa.

 

Assim é a vida no campo: feita de perdas e renascimentos, de cheiro de terra molhada e sabor de fruta no pé, de bichos e gente, de silêncio e canto, de coragem e ternura.

 

Capítulo 18 - 19 - Capítulo 20

 

Corvo do Silêncio
Enviado por Corvo do Silêncio em 17/08/2025
Alterado em 19/08/2025
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