Corvo do Silêncio
"Onde o mundo grita, o Corvo do Silêncio escreve, e no som das palavras, a alma desperta."
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Textos

Dia 18 – Cheiro de Terra Molhada

Quando a fé se senta na varanda

 

Dia 18 de julho de 2025

Todo início de tarde na fazenda tem um ritmo que só quem vive aqui entende. Os trabalhadores terminam de guardar as ferramentas, lavam o suor com a água fresca da bica, limpam as botas batendo-as no batente, e fazem aquela prosa rápida para falar do dia de trabalho e planejar o seguinte. É como se fosse um ritual silencioso de despedida, cada um tomando seu rumo, o sol se deitando devagar no horizonte, deixando no ar o cheiro de capim amassado e fumaça das primeiras cozinhas acesas.

 

Na casa de Pedro, quando a noite cai, o costume é sempre o mesmo: café fresco na mesa de madeira gasta, feito por dona Lourdes, forte o bastante para acordar até defunto; uma partida de dominó que sempre termina em risada alta; a viola de Tião dedilhando modas antigas; e eu, arriscando uns versos desafinados, mais torto que cigarra no verão.

 

Mas naquele dia, nada disso aconteceu. Não havia música, não havia riso. O clima estava pesado, e não tinha nada de poético.

 

Voltávamos de Boa Vista no caminhão emprestado, o motor roncando forte, carregando na carroceria as peças novas para a caminhonete. O cheiro de óleo e graxa ainda grudava nas mãos, e a poeira da estrada tinha se misturado ao suor, formando uma camada áspera na pele. O sol já se despedia atrás das colinas, pintando o céu de laranja queimado, e as primeiras estrelas tentavam se mostrar no alto.

 

Foi então que Pedro, de repente, franziu o cenho.

 

— Tem algo errado, Mano. A voz dele saiu seca, sem brincadeira. Apertou o acelerador e o caminhão deu um solavanco, fazendo as peças na carroceria se mexerem. — Olha ali. Ele apontou com o queixo para a entrada da fazenda. — Tem muita gente chegando, e os que estão aqui estão quietos demais.

 

Segui o olhar dele. Perto da varanda, umas dez pessoas, homens e mulheres, parados em grupos pequenos, falando baixo ou apenas olhando para a porta da casa. Ninguém ria, ninguém gesticulava como de costume.

 

Ao passarmos pelo portão, percebi que até os cachorros estavam estranhamente calmos, deitados, como se sentissem a mesma tensão no ar.

 

Entramos rápido. Na sala, Marina, Jonas e dona Lourdes estavam reunidos. Os olhos de Marina estavam marejados, e Jonas, sempre falante, estava calado, olhando para o chão como se buscasse resposta na madeira.

 

— Pedro. Começou Marina, mas não terminou.

Pedro não esperou. Passou por ela e foi direto para o quarto, as botas batendo forte no assoalho.

 

— O padre tá lá, e dona Antonia também. Ela é enfermeira, completou Marina, a voz quase num sussurro.

 

Dona Lourdes ficou quieta, mas o rosto dela dizia tudo. As rugas pareciam mais profundas, a boca cerrada, os olhos marejados, mas firmes, como se não quisesse deixar o medo tomar conta.

 

Ficamos no corredor, esperando. O barulho do vento passando pelo telhado parecia mais alto, e o tique-taque do relógio de parede marcava cada segundo como uma martelada.

A porta do quarto se abriu. O padre Robério saiu primeiro, ajeitando os óculos no rosto. Trazia no olhar um cansaço misturado com alívio.

 

— Tudo vai ficar bem. Olhou para dona Lourdes antes de continuar. — Vó tem uma saúde de ferro.

 

Logo atrás veio dona Antonia, segurando a prancheta onde anotava alguma coisa. Eu já sabia, por Marina, que vó usava marca-passo, mas a curiosidade e a preocupação me fizeram perguntar:

 

— Foi problema no aparelho?

Ela balançou a cabeça com calma, falando num tom que parecia abraçar a gente.

— Não, não foi o aparelho. Foi só um descompasso momentâneo. O marca-passo está fazendo o trabalho dele, mantendo o coração dela firme. Hoje ele agiu exatamente como devia. Ela só precisa de repouso, nada de esforço por uns dias. Vai ficar tudo bem.

 

O alívio foi imediato, mas a tensão ainda rondava. A pedido de dona Antonia, ninguém entrou no quarto, só Pedro ficou ao lado da vó.

 

A noite avançou, trazendo o cheiro de terra molhada que vinha do pasto. Lá fora, o vento balançava as folhas das mangueiras, e o canto dos grilos se misturava ao estalar distante de lenha queimando em algum fogão de lenha vizinho.

 

Na escada que dava para a varanda, o bode Chico estava sentado, imóvel, com a barba balançando ao sabor da brisa. Parecia entender que aquele não era dia para suas travessuras.

 

— Só dona Lourdes e a vó, esse barbicha respeita. Comentou Marina, tentando arrancar um sorriso de mim.

Sentamos lado a lado, vendo o entra e sai de gente pela porta. A prosa era baixa, quase sussurrada. Ninguém tinha coragem de levantar o tom.

 

Perto das dez da noite, a porta do quarto se abriu. E lá estava ela: vó, de pé, segurando-se no braço de Pedro, mas com o queixo erguido e um brilho firme nos olhos.

— No dia em que eu me for dessa vida, não quero essas caras de tristeza. Falou vó, com aquela voz que carrega décadas de experiência e autoridade.

 

Foi como se uma onda de alívio atravessasse a sala. O barulho das cadeiras arrastando no chão, os passos apressados, tudo se misturou. Dona Lourdes foi a primeira a chegar até ela. Abraçou-a com força, sem esconder o choro.

 

— Mãe. — Disse, a voz embargada, enquanto passava a mão nos cabelos brancos da vó.

Os outros se aproximaram, uns tocando no braço dela, outros apenas sorrindo com os olhos. No campo, a vida e a morte são velhas conhecidas, mas quando a vida vence, a comemoração é silenciosa e cheia de gratidão.

 

A prosa voltou, mas diferente. Não teve dominó, nem a viola de Tião. Ele estava encostado na parede, os olhos vermelhos, segurando a viola como quem segura um amigo doente, não conseguiu tirar nem um dó.

 

E foi aí que o bode Chico, talvez sentindo que o clima já estava mais leve, resolveu agir. Seu Zé, que se despedia da vó, passou perto dele. O danado baixou a cabeça e bum! Uma cabeçada certeira no bumbum do seu Zé.

 

A primeira gargalhada foi da vó. Uma risada clara, aberta, que contagiou todo mundo. Até seu Zé, levantado por Jonas, ria enquanto massageava o lugar da pancada.

 

Chico, como se nada tivesse acontecido, foi até a mangueira grande, pulou numa das raízes salientes e dali subiu para o galho baixo onde sempre dormia. Pensa num bode que pensa que é galinha é esse Chico, fez sua loucura e depois foi para o galinheiro dormi.

 

A vida, afinal, voltava para o seu ritmo.

 

No compasso do coração e da roça

(esse fiz pra vó na mesma noite)

 

O campo tem seu tempo,

e o coração aprende com ele.

Quando para, é para lembrar

que a vida é feita de pausas.

 

Na poeira e no orvalho,

o corpo e a fé se sustentam.

E quando o riso volta,

até o bode sabe que é hora de viver.

 

— Vai Mano. Mi menor. Disse Tião com a viola em punho...

 

 

Capítulo 17 - 18 - Capítulo 19

Corvo do Silêncio
Enviado por Corvo do Silêncio em 16/08/2025
Alterado em 17/08/2025
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