Corvo do Silêncio
"Onde o mundo grita, o Corvo do Silêncio escreve, e no som das palavras, a alma desperta."
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Capítulo 4

O Vento da Verdade

 

O sol ainda não tocara o zênite quando Eliú, filho de Baraquel, da linhagem de Bus, se ergueu entre os homens. Jovem em idade, mas firme no semblante e inquieto em espírito, aguardara pacientemente que os mais velhos falassem. Seus olhos, atentos como os de um escriba diante de uma tábua virgem, não perderam um só gesto ou palavra. Mas agora, entre o pó das vestes desgastadas de seus companheiros, e o silêncio pesado de um deserto que parecia ouvir, ele já não conseguia conter as brasas que queimavam no peito.

Eliú olhou para os homens assentados sobre a terra, com os joelhos cobertos de cinza e as bocas secas de argumentos, e disse com a voz embargada pela reverência:

 

— Sou jovem, vós sois anciãos. Por isso temi e temi declarar-vos meu juízo. Pensei: "Os dias falarão, e a multidão dos anos ensinará sabedoria." Mas há um espírito no homem, e a inspiração do Todo-Poderoso os faz entender.

 

Ele respirou fundo. O vento dançava entre os trapos das tendas e nas dobras das túnicas manchadas. Sua voz ganhou firmeza, como se as próprias dunas ouvissem.

 

— Vocês falaram muito, e ainda assim nada convenceram. Jó, em tua angústia, disseste ser justo. E vós, seus amigos, acusaste sem evidência, tentando fazer da dor uma prova.

 

Os olhos de Jó encontraram os de Eliú. Havia neles um cansaço imemorial, como de quem conversara com os próprios abismos. Mas havia também escuta, a escuta de quem não tinha mais nada a perder, exceto a alma.

 

Eliú se aproximou devagar, como quem não pisa apenas sobre areia, mas sobre feridas abertas.

 

— Jó, tu clamaste por justiça, e isso é digno. Mas há uma justiça que os homens não compreendem. O sofrimento, às vezes, não é castigo, mas um fogo que purifica o ouro. Não é a mão que pune, mas a mão que molda.

 

As palavras dançavam no ar seco, pousando como brasas nos corações. Os mais velhos não replicaram. Havia algo na presença de Eliú que não vinha do saber dos livros, mas de um lugar mais profundo, como se o céu soprasse verdades nos ouvidos do jovem.

 

Ele prosseguiu:

 

— O homem não tem o direito de medir Deus com a régua da dor. Quem é o vaso para interrogar o oleiro? Tu disseste, Jó: “Por que nasci?” Mas quem conhece o que nasce no espírito, senão o próprio Criador? A tempestade não vem sem propósito, e a escuridão também tem um papel na luz.

 

Enquanto falava, as nuvens começaram a se formar no horizonte. Um vento forte soprou entre as tamareiras, levantando a areia que dançava como véus de noiva no deserto. O murmúrio da natureza crescia, como se o mundo, em si, se preparasse para algo.

Eliú olhou para o céu.

 

— Não é assim que Ele fala? Pelo trovão, pelo relâmpago, pelo vento? Deus não está calado. Somos nós que, entre gemidos e orgulho, esquecemos de escutá-lo. Então, um trovão ribombou sobre as montanhas. Os animais se agitaram nos currais, e os servos que ainda restavam correram a amarrar o que podiam. O céu, antes azul, tornava-se chumbo. E de dentro da tempestade, uma voz, uma voz sem boca, sem corpo, mas com o peso de mil gerações, fez-se ouvir.

 

— Quem é este que obscurece o conselho com palavras sem conhecimento?

 

Todos se prostraram. Jó tremeu. Os amigos cobriram os rostos com o manto. Eliú, por um instante, calou-se, sua função estava cumprida. Era Deus quem agora falava.

 

A voz continuou, não como uma acusação, mas como um despertar:

 

— Cinge agora os teus lombos como homem, e Eu te perguntarei, e tu me ensinarás.

 

Onde estavas tu, quando Eu lançava os fundamentos da terra? Dize, se tens entendimento.

Quem encerrou o mar com portas, quando este rompeu e saiu da madre?

 

Mandaste tu, alguma vez na tua vida, ordens à manhã, ou fizeste à alva saber o seu lugar?

A cada palavra, as pedras pareciam se mover. Não havia ira na voz, mas poder. Não havia vingança, mas verdade. Jó ouvia com o coração aos frangalhos. As úlceras em seu corpo ardiam como brasas vivas, mas sua alma... sua alma começava a compreender.

 

As interrogações divinas prosseguiam, vastas como o firmamento:

— Acaso sabes tu as ordenanças dos céus?

 

Pode o teu braço como o de Deus trovejar com voz semelhante à Sua?

Olhaste tu os depósitos da neve, ou conheces tu os caminhos dos raios?

Cada pergunta não era um castigo, mas um espelho. Jó via, em cada uma, o limite de sua existência. A pequenez do humano diante do eterno. O orgulho diluindo-se como barro em chuva.

 

E ali, naquele momento, não havia mais necessidade de resposta. A sabedoria não era mais entendida como explicação, mas como reverência. O silêncio, enfim, tornara-se sabedoria.

Quando a tempestade cessou, havia um novo silêncio. Um silêncio profundo, não mais de desespero, mas de reverência. Como a paz após a dor do parto. Como o alívio depois do pranto.

 

Jó então se ergueu, não com altivez, mas com humildade. Cobriu o rosto com as mãos e disse:

 

— Eis que sou indigno; que te responderei eu?

Pus a minha mão sobre a minha boca.

Com os ouvidos eu ouvira falar de ti, mas agora meus olhos te veem.

Por isso me abomino e me arrependo no pó e na cinza.

 

O vento que antes gritava agora acariciava os rostos, como se o próprio Deus os tocasse. Os amigos abaixaram as cabeças. Eliú sorriu, não com vanglória, mas com gratidão. E o céu, enfim, clareou.

 

Quantas vezes, em nosso sofrimento, buscamos explicações humanas e culpamos o silêncio de Deus, sem perceber que Ele fala em meio à tempestade? O sofrimento nem sempre é resposta ao pecado, mas muitas vezes é o cadinho que forma a fé. Jó é o retrato de todos os que choram, esperam, se revoltam..., mas não desistem de escutar. Que também nós saibamos ouvir, mesmo quando o céu se cobre de nuvens.

 

Capítulo 3 - 4 - Capítulo 5

 

Corvo do Silêncio
Enviado por Corvo do Silêncio em 21/08/2025
Alterado em 21/08/2025
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