As brasas da noite ardiam sob um céu de chumbo, e Jó, sentado em meio às cinzas do seu antigo lar, coberto de úlceras e com o olhar perdido no horizonte sem cor, abriu a boca. Por sete dias e sete noites ele havia se mantido em silêncio, como era o costume entre os homens do Oriente quando confrontados com a grande dor. Mas agora, o sofrimento transbordava pelos poros feridos de sua pele e também pelas frestas da alma, e sua voz rompeu a noite como uma tempestade que não mais se contém.
“Pereça o dia em que nasci, e a noite em que se disse: foi concebido um homem.”
Suas palavras não vinham de um coração que se afastava de Deus, mas de alguém que buscava, no meio da escuridão, entender o porquê do peso que lhe fora lançado. Não amaldiçoava o Senhor, jamais o faria. Mas queria apagar sua própria existência, desejando que a história de sua vida tivesse sido cortada pela raiz antes mesmo de brotar.
Os três homens que o acompanhavam, Elifaz de Temã, Bildade de Suá e Zofar de Naamate, ouviram em silêncio. Tinham chegado dias antes, quando souberam da calamidade que recaiu sobre o homem outrora mais íntegro do Oriente. Tocados por compaixão, rasgaram seus mantos ao vê-lo e lançaram pó sobre as cabeças, seguindo os ritos do lamento profundo. Mas o tempo agora exigia palavras, e cada um falaria segundo seu entendimento.
Elifaz, o mais velho e considerado sábio entre os três, inclinou o corpo e disse com voz grave:
— Se alguém tentar falar contigo, ficarás aborrecido? Mas quem poderia conter as palavras? Tu ensinavas a muitos e fortalecias as mãos fracas. Mas agora que te toca, te impacientas? Não é o teu temor a Deus a tua esperança? Porventura perece o inocente? Aqueles que lavram o mal é que o colhem.
Jó abaixou os olhos. Era como se fosse acusado com luvas de veludo. Palavras brandas, mas que picavam a alma. Ele não tinha pecado escondido. Sua consciência era limpa. Sentia-se esmagado pela injustiça de ser lido como culpado quando o que queria era consolo.
— Maldita seja a luz daquele dia, murmurou, como quem se recusa a dar razão a quem julga de fora o vulcão que arde por dentro.
Bildade, mais ríspido, prosseguiu com argumentos que se fundiam aos costumes e códigos sociais da época, onde a justiça de Deus se manifestava através de bênçãos ou punições visíveis:
— Se teus filhos pecaram contra o Altíssimo, foi por isso que Ele os entregou à sua transgressão. Mas se tu buscares a Deus e clamares ao Todo-Poderoso, talvez Ele te restabeleça. Pois Ele não rejeita o íntegro.
Como carregar tal insinuação? Jó se viu sufocado. As palavras de seus amigos, por mais que envoltas em sabedoria, vinham como pedras envoltas em panos. Ele não queria explicações, mas presença. Não buscava doutrina, mas empatia.
E no coração de sua dor, Jó falou com as mãos trêmulas, gesticulando como quem tenta alcançar o céu. — Oh, que minhas palavras fossem escritas! Que fossem gravadas com ferro em pedra! Pois eu sei que o meu Redentor vive e que, por fim, se levantará sobre o pó!
Seus lamentos não eram apenas protestos de quem sofre, mas uma oração misturada à angústia, uma busca sincera por sentido. Era a voz de quem sabia que nem sempre o sofrimento é castigo, mas às vezes é escola, e nem tudo o que se aflige é culpado, assim como nem tudo o que prospera é justo.
Zofar, o mais impulsivo dos três, levantou-se e replicou com fervor:
— Tu dizes: minha doutrina é pura. Mas se Deus falasse agora, saberias que Ele exige de ti mais do que mereces. O ímpio pode triunfar por um tempo, mas a sua alegria é breve.
As palavras de Zofar espelhavam o pensamento comum da época, quando se acreditava que a prosperidade era a recompensa do justo e a dor, o castigo do ímpio. Mas Jó, em sua angústia, tornava-se símbolo de uma fé que não se apoia apenas nas bênçãos, mas na confiança cega, como um cego que segura firme na mão de quem vê.
E o que aprendemos com isso, séculos depois, entre os ruídos modernos e os silêncios digitais?
Quantas vezes encontramos pessoas que, como os amigos de Jó, estão prontas a diagnosticar a dor alheia, sem saber o que arde por dentro? Quantas vezes julgamos o que não compreendemos, vestindo o sofrimento com roupagem de culpa? E, sobretudo, quantas vezes nossa fé vacila quando a vida nos toma tudo, e tudo o que resta são cinzas no chão e feridas na alma? Jó nos ensina que há um espaço sagrado entre a dor e o julgamento. Que há perguntas que não se respondem, mas se escutam. Que o sofrimento não é sempre punição, mas pode ser lapidação.
Entre vozes que acusam e o silêncio de um céu que parece distante, Jó continua orando. E sua voz ecoa como um grito que atravessa os tempos, não para justificar a dor, mas para dar-lhe dignidade.
E assim, neste cenário poeirento da antiguidade, entre os cacos do que foi, a alma de um homem permanece em pé, ainda que tremendo, sustentada pela fé em algo que seus olhos já não enxergam, mas que seu coração se recusa a abandonar.
O debate entre Jó e seus amigos seguirá, repleto de idas e vindas, erros de interpretação, lampejos de sabedoria e profundas reflexões. E em cada uma dessas vozes, veremos um reflexo de nós mesmos, com nossos conselhos apressados e nossa fé à prova diante da dor alheia e da nossa.
E Jó, mesmo entre cinzas, continua ensinando, não pela perfeição de suas respostas, mas pela honestidade de suas perguntas.
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