O sol ainda não tinha rasgado os véus da madrugada quando Jó, com as mãos trêmulas e o corpo exausto, despertou de mais uma noite atormentada por sonhos febris. A casa, outrora cheia de risos e passos apressados dos servos, permanecia silenciosa como um túmulo. O cheiro da cinza no braseiro, apagado há dias, misturava-se ao odor amargo de sua pele doente. Havia no ar um silêncio sagrado, mas também um presságio sombrio. A dor que antes lhe atingira a alma, agora começava a se instalar em sua carne, como um verme faminto a corroer lentamente.
Na esfera celeste, forças invisíveis ainda negociavam sua sorte. O Acusador, com olhos de escuridão e voz sibilante, obtivera de Deus nova permissão: tocar-lhe a carne, feri-lo de forma que sua integridade fosse provada até os ossos. Mas não lhe seria permitido tirar-lhe a vida. Essa era a única fronteira que não poderia ser cruzada. Assim, a provação adentraria agora o corpo de Jó, como se a alma já não estivesse suficientemente esfolada.
As feridas surgiram como labaredas sobre sua pele, úlceras profundas e purulentas, dos pés à cabeça. Algumas estouravam e vertiam líquido quente; outras secavam e rachavam, provocando ardor. O que antes era um homem respeitado por sua firmeza, agora se arrastava como um espectro entre os escombros de sua vida. O patriarca da cidade de Uz tornara-se um exemplo do que o sofrimento pode fazer até mesmo com os mais justos.
Sentado entre as cinzas, usando um caco de cerâmica para raspar as crostas da pele, Jó parecia o retrato de um lamento vivo. O pó colava-se ao suor, e as moscas já começavam a rodeá-lo. Sua barba desgrenhada escondia o contorno da boca, mas não abafava os gemidos. Era um homem nu diante da humanidade e de Deus, nu de posses, de saúde, de filhos, e agora, quase de esperança.
Sua esposa, uma mulher que durante anos partilhara do conforto, dos filhos e dos pomares que floresciam na primavera, já não suportava assistir à decadência do marido. Havia nos olhos dela não apenas dor, mas uma revolta silenciosa, o tipo de desespero que nasce quando todos os pilares da fé parecem ruir. “Ainda manténs tua integridade?”, perguntou ela, com voz embargada. “Amaldiçoa o teu Deus, e morre.”
A frase não veio com crueldade, mas como um grito de quem se afoga. Ela não pedia a morte de Jó por vingança, mas por compaixão, como se desejasse encerrar sua agonia. Talvez, no íntimo, desejasse que Deus o livrasse ao menos com a morte. E, no entanto, a resposta de Jó foi tão firme quanto triste: “Falas como uma louca. Receberíamos de Deus o bem, e não também o mal?”
Essa fala, breve e grave, atravessou o tempo como uma flecha, e até os dias de hoje ecoa como ensinamento. Nos tempos modernos, quando o sofrimento parece injusto, quantos de nós blasfemamos diante da adversidade, esquecendo-nos dos dias bons que também foram dádivas? A fidelidade de Jó mostra que a fé verdadeira não depende das circunstâncias, mas da convicção de que Deus é justo, mesmo quando não compreendemos os caminhos. A mulher calou-se. Não havia mais lágrimas para chorar. Nem ela, nem ele. Ambos se deitaram no silêncio de um lar em ruínas, onde o teto já ameaçava cair. A doença afastara os servos, os vizinhos, e até os parentes. Os códigos sociais da época viam na doença um possível castigo divino, e quem era Jó, agora ferido e falido, senão um maldito aos olhos dos outros?
Dias depois, vieram os amigos. Três homens antigos, com barbas já grisalhas e sandálias gastas: Elifaz, de Temã; Bildade, de Suá; e Zofar, de Naamá. Haviam ouvido, de longe, os rumores sobre o estado de Jó. Não era comum que alguém tão próspero descesse tão rapidamente ao chão da humilhação. Com o coração apertado, vieram vê-lo. E, ao encontrá-lo, quase não o reconheceram.
O que viram foi um homem deformado pela dor, física e espiritual. Os olhos de Jó, antes vivos, estavam fundos como poços secos. As mãos tremiam, o corpo curvado, a respiração irregular. Eles rasgaram suas vestes em sinal de luto, lançaram pó sobre suas cabeças e se sentaram no chão, junto a ele, em completo silêncio. Sete dias e sete noites permaneceram assim.
Na cultura da época, o silêncio era mais eloquente que qualquer palavra. Era um lamento coletivo, uma presença solidária, um reconhecimento de que o sofrimento às vezes não pode ser explicado, apenas compartilhado. Hoje, nesse mundo apressado de diagnósticos rápidos e soluções rasas, quantos de nós ainda sabem sentar-se ao lado do outro sem tentar resolver, apenas sentir junto?
Jó não falou. Nem os amigos. Os olhos diziam tudo: o espanto, o pesar, a impotência. A presença deles, ainda que muda, foi um bálsamo temporário para a alma ferida de Jó. Pela primeira vez desde a queda, ele se sentiu visto, mesmo que deformado. Mas aquela trégua silenciosa logo daria lugar a palavras duras, e ao julgamento travestido de conselhos.
Durante aqueles sete dias, Jó refletiu. Cada amanhecer sem cura era como um açoite. O tempo arrastava-se lento, e cada segundo era uma prova. Ele não compreendia os motivos, mas não ousava acusar o Altíssimo. A sabedoria de Jó estava em sua honestidade: ele não fingia que não sofria. Chorava, gemia, questionava em seu coração, mas mantinha-se diante de Deus com reverência.
O odor das feridas agravava-se. Os cães da vila vinham lamber o chão próximo, atraídos pela podridão. As crianças o olhavam de longe, assustadas. Os idosos balançavam a cabeça e cochichavam entre si. Jó, o justo, agora era visto como um leproso, um excluído. E, contudo, mesmo envolto em miséria, ele se mantinha em integridade, como se dissesse ao mundo: “Vocês veem minha dor, mas não conhecem meu Deus.”
Quando olhamos para Jó, olhamos para todos os que, hoje, enfrentam doenças incuráveis, perdas profundas, pobreza repentina. Quantas vezes julgamos o outro pelo que parece ser um castigo, esquecendo que nem todo sofrimento é consequência de erro? A vida de Jó nos convida à empatia, à escuta, e sobretudo, a não sermos os amigos que acusam, mas os que sentam ao lado e esperam.
As noites eram especialmente cruéis. Sem conforto, sem sono, Jó escutava o barulho das aves, o zunido dos insetos sobre suas chagas. Às vezes, recordava o riso dos filhos. Outras vezes, apenas clamava em silêncio, como se sua alma gritasse mesmo quando a boca permanecia calada. Ainda assim, mesmo dilacerado, Jó não amaldiçoava. Ele sabia que o juízo pertence a Deus.
Ao final dos sete dias, os amigos se entreolharam. Era chegada a hora de falar. E, com a fala, viriam os primeiros embates, não entre inimigos, mas entre concepções de mundo. Elifaz, o primeiro a abrir a boca, traria suas suposições. Mas antes disso, Jó ergueria sua voz, não contra Deus, mas contra a vida, contra a dor que parecia não ter fim.
Esse capítulo da vida de Jó termina sem resposta. Termina na espera, como tantas esperas humanas. A lição que nos deixa é clara: há dores que não se resolvem com fórmulas prontas. Há sofrimentos que nos transformam, e é nesse chão de cinzas que a fé se purifica, não como ouro que brilha, mas como rocha que não se parte.
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