Corvo do Silêncio
"Onde o mundo grita, o Corvo do Silêncio escreve, e no som das palavras, a alma desperta."
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Textos

Capítulo 1

A Fidelidade de Jó

Quando a dor testa a alma, a fé responde em silêncio.

 

Na terra de Uz, onde as planícies eram banhadas por um calor antigo e as dunas se moviam como serpentes silenciosas sob o comando do vento, vivia um homem de integridade que parecia moldado pelas mãos do próprio Eterno. Jó era seu nome, um nome que os pastores pronunciavam com respeito, e os escribas anotavam com reverência em seus relatos. Ele caminhava entre tendas e vinhedos como alguém que pertencia a uma ordem anterior à ruína dos homens, como se o mundo ao seu redor dependesse de sua retidão para permanecer em harmonia.

 

Jó era um homem de sua época e, ainda assim, transcendia-a. Seus cabelos já traziam a prata do tempo, mas seus olhos, ainda guardavam o brilho de um jovem que conhecia a justiça como quem conhece o peso de uma balança honesta. Seus servos o seguiam sem temor, seus filhos o honravam com banquetes, e sua esposa, embora discreta, mantinha nas feições a paz de quem vive ao lado de um homem de paz.

 

A terra ao redor de Uz era fértil, mas implacável. Era preciso domá-la com mãos calejadas e oração constante. As chuvas vinham quando queriam, os céus se fechavam como portas de bronze, e cada colheita era um ato de fé. Jó possuía rebanhos aos milhares, caravanas que levavam seus bens às cidades do oriente, e tendas que se erguiam como pequenas cidades. Contudo, não era seu ouro que lhe dava valor, mas o temor que carregava diante de Deus, um temor que não nascia do medo, mas do amor e da entrega.

 

A cada manhã, quando o céu ainda era azul pálido e as aves silvestres entoavam louvores que nenhum escriba conseguia traduzir, Jó se levantava. Tomava cinza entre os dedos e, com um sopro, entregava ao vento sua oração. Era um ritual antigo, de sacrifício e intercessão, por si e por seus filhos, caso algum deles houvesse pecado em pensamento ou gesto durante a noite de celebrações. “Talvez em seus corações tenham maldito a Deus”, dizia ele. E ali, entre o pó da terra e o ardor da chama, Jó falava com o invisível como quem conversa com um amigo.

 

Naqueles tempos, os homens se mediam não só pelas posses, mas por sua retidão. E Jó era íntegro. Ele socorria o órfão, abria as portas ao estrangeiro, fazia justiça ao servo injustiçado e jamais deixaria que a ira dormisse em seu peito. Seu coração era casa para o próximo, e seus lábios não abriam caminho para a mentira. Mesmo assim, mesmo nesse homem justo, o sopro do infortúnio se preparava para soprar com força de tempestade.

 

O céu espiritual, invisível aos olhos humanos, era palco de uma conversa que ninguém em Uz poderia imaginar. O Eterno, em sua glória intangível, contemplava a terra, e entre os que se apresentavam diante Dele, estava um espírito sem lar, Satanás, o acusador. Seu olhar era ácido, e sua língua, afiada como lâmina. Deus falou de Jó como um pai fala de um filho que honra a casa: “Viste o meu servo Jó? Homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desvia do mal?”

 

Mas o acusador riu. “Acaso teme Jó a Deus de balde? Não estendeste tu uma cerca ao redor dele, de tudo o que tem? Toca no que possui, e verás se não te amaldiçoará em tua face.”

 

E então, numa decisão que só o Altíssimo pode compreender, o cerco foi aberto.

 

Nos dias que seguiram, o vento soprou com crueldade. Primeiro, vieram os mensageiros, cada um trazendo uma tragédia. Um após o outro, interrompiam o silêncio da casa de Jó com vozes trêmulas e roupas rasgadas. Os sabeus atacaram os bois e mataram os servos. Fogo caiu do céu, queimando as ovelhas. Os caldeus saquearam os camelos. E, por fim, um vendaval vindo do deserto derrubou a casa onde seus filhos festejavam, matando-os a todos.

 

Jó ouviu. Calado. Os olhos ardiam, mas não derramavam lágrima. Como quem ouve o juízo sem resistência, rasgou suas vestes, raspou a cabeça com cinza e prosternou-se ao chão. E dali, do pó que outrora ofertara como intercessão, ele ofereceu algo mais profundo: sua alma ferida. “Nu saí do ventre de minha mãe, e nu tornarei para lá. O Senhor deu, e o Senhor tomou. Bendito seja o nome do Senhor.”

 

Quantos de nós, nos dias de hoje, ao ver desmoronar o que construímos com suor, somos capazes de bendizer o nome de Deus? Quantos, diante da perda, mantêm a lucidez da alma? Jó, naquele instante, tornou-se espelho para todo aquele que um dia enfrentará a sombra. E todos enfrentaremos.

 

A dor não lhe deformava a fé. Antes, fazia-a mais cristalina, mais feroz, como metal provado pelo fogo. Jó não praguejou. Não amaldiçoou. Não exigiu justiça, nem blasfemou contra o céu. Seu silêncio era mais eloquente que qualquer oração. Ali, naquela noite sem filhos, sem rebanhos, sem empregados, apenas com o som do vento e da poeira falando entre as tendas vazias, Jó ficou. E o céu o olhava.

 

Nos dias seguintes, a doença veio como última lâmina. Feridas cobriram seu corpo da planta dos pés ao alto da cabeça. Jó se sentava entre cinzas, usando cacos de barro para raspar as crostas que sangravam. A dor física não era menor que a dor da alma. Mesmo assim, nenhuma acusação contra Deus saía de sua boca.

 

Sua mulher, desesperada, já sem forças, disse: “Ainda conservas a tua integridade? Amaldiçoa a Deus e morre.” Não era raiva o que falava através dela, era desespero, um desespero que muitos reconhecem. Era a voz de quem vê o justo sofrer e já não consegue aceitar o silêncio de Deus. Jó respondeu com firmeza: “Falas como uma louca. Receberemos de Deus o bem, e não receberemos também o mal?”

 

Essa pergunta soa pelos séculos, até hoje. Será que a fé só tem valor quando há recompensa? Será que amar a Deus depende da ausência de sofrimento?

 

Amigos vieram de longe, Elifaz, Bildade e Zofar. Ao vê-lo de longe, mal o reconheceram. Sentaram-se com ele em silêncio por sete dias e sete noites, pois viram que a dor era demasiadamente grande. Naquele silêncio, houve mais empatia do que em discursos. Quantas vezes o que precisamos é apenas de alguém ao nosso lado, sem respostas, sem fórmulas, apenas presença?

 

O primeiro capítulo da história de Jó termina não com a explicação do sofrimento, mas com o mistério do silêncio. E é neste silêncio que reside a maior lição: a fé verdadeira não é um contrato com Deus, mas um voto irrevogável de amor, mesmo quando as respostas não chegam, mesmo quando tudo desaba, mesmo quando a dor se torna o único idioma possível. Nos dias de hoje, onde muitos confundem bênçãos com posses e fé com sucesso, Jó nos lembra que fidelidade é permanecer mesmo quando tudo nos convida a partir.

 

E é nesse solo de cinzas que floresce a esperança.

 

Mas isso é mensagem para o capítulo seguinte.

 

 

Mensagem de Introdução Leia Aqui

 

1 - Capítulo 2

 

 

Corvo do Silêncio
Enviado por Corvo do Silêncio em 20/08/2025
Alterado em 21/08/2025
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