16 de julho de 2025
Eu nem ia escrever nada hoje, mas depois que Tião puxou a cadeira e se sentou ao meu lado, trazendo uma cuia de chimarrão fumegante, percebi que seria ele quem contaria o dia por mim. Eu fiquei na lida com Matheus, tentando devolver a vida à velha caminhonete que ainda tossia e engasgava como um ancião teimoso. Tião, porém, viu tudo o que aconteceu, e suas palavras carregavam a força de quem esteve lá, suando e sorrindo.
— Pois é, meu amigo, começou ele, olhando para o terreiro como se ainda visse o movimento. — O dia já amanheceu com o cheiro de trabalho. O sol nem tinha dado as caras direito e já vinha gente chegando. Uns vinham a pé, outros de bicicleta, e teve até um que veio montado no cavalo, trazendo uma marreta no ombro. Tudo por causa do recado do Padre Robério.
Segundo Tião, o padre, antes de vestir a batina, tinha sido mestre de obras por mais de vinte anos. Conhecia as medidas de um telhado como conhecia as passagens da Bíblia. “É um homem que sabe levantar uma parede e levantar um ânimo”, disse ele.
A varanda da vó parecia um pequeno quartel-general naquela manhã. O padre chegou, ajeitou o chapéu e dividiu as tarefas como quem reparte pão. Pedro ficou à frente da equipe que iria trabalhar na igrejinha, Tião, Jonas e mais dois vizinhos, seu Adauto e Zeca do Cedro. A outra equipe, comandada pelo próprio padre, seguiria para o barracão, que precisava ser erguido quase do zero.
— Cada um sabia o que tinha de fazer. Tião dizia, gesticulando como se ainda desse ordens. — As mulheres ficaram com a parte mais importante: garantir que ninguém passasse fome. Dona Loudes, a vó e mais três vizinhas tomaram conta do fogão, armando uma verdadeira operação de panelas, tachos e fumaça.
As crianças maiores, com as bochechas coradas pelo frio da manhã, iam e vinham levando água e refrescos. Os menores ficavam perto das mães, aprendendo o valor de servir.
Na igrejinha, Pedro e Tião começaram retirando o que restava do telhado. As telhas quebradas eram empilhadas de um lado, e as boas eram aproveitadas. Jonas, com seu jeito rápido, subia e descia a escada levando ripas novas. Seu Adauto cuidava de cortar as peças de madeira, enquanto Zeca pregava com firmeza.
— No começo foi silêncio, dizia Tião, só o som do martelo e da serra. Mas depois, rapaz. Tião fez uma pausa e sorriu. — Depois veio o canto. A gente começou a puxar moda de viola, mesmo sem viola, só pra animar. Foi cada um lembrando um refrão, e quando vimos, até as mulheres lá na cozinha estavam respondendo com as vozes.
Do outro lado, no barracão, a equipe do padre já erguia as primeiras colunas. O chão, ainda úmido da chuva, soltava um cheiro forte de barro, misturado ao de madeira nova. A cada martelada, parecia que um pedaço da esperança da comunidade era pregado junto.
— O padre, disse Tião, com respeito na voz, ele não mandava, não. Ele fazia junto. Subia na escada, carregava viga no ombro e até brincava com as crianças. “Obra de Deus e obra de homem não se separam”, ele dizia.
Por volta do meio-dia, o cheiro do almoço atravessou o ar. Arroz soltinho, feijão temperado no fogão a lenha, carne cozida com batata e abóbora, farofa de ovos, até quem estava cansado ganhou ânimo só pelo aroma. As panelas foram colocadas no terreiro, sobre tábuas improvisadas como mesas, e cada um pegou seu prato de alumínio.
— Comer junto assim. Tião suspirou. — Não é só matar a fome. É renovar a amizade. A gente olhava um pro outro e via que todo mundo estava ali pelo mesmo motivo.
Depois do almoço, sem tempo para moleza, voltaram ao trabalho. O sol da tarde bateu forte, mas ninguém parou. Tião contou que, ao final do dia, a igrejinha já estava de telhado novo, as paredes reparadas e até uma demão de cal na fachada. O barracão não ficou pronto, mas as colunas estavam firmes e a estrutura já se erguia no horizonte.
— Quando o padre falou que a festa não ia ter, a gente ficou triste. Mas hoje, mexendo nessas tábuas, eu pensei, às vezes, o importante não é a festa, mas o motivo de se juntar. Tião falou, coçando o queixo. — O trabalho de hoje foi uma festa de outro jeito.
Ele descreveu o entardecer como se fosse um quadro: a igrejinha branca, recém-pintada, brilhando sob a luz alaranjada; as crianças sentadas na escadaria, tomando refresco; e as mulheres recolhendo as panelas, rindo de histórias contadas. O barracão, ainda incompleto, tinha o esqueleto de madeira apontando para o céu, como se fosse uma promessa.
Já era noite quando Tião voltou, trazendo no rosto o cansaço e a satisfação. Eu e Matheus ainda estávamos sujos de graxa, a caminhonete finalmente ronronando no terreiro como se tivesse voltado vinte anos no tempo. Ele se sentou na mesa, comeu em silêncio por alguns minutos e depois começou a me contar tudo isso.
Quando terminou, se levantou, foi até o oratório da vó e acendeu uma vela diante da imagem de Santo Antônio. Ficou alguns segundos ali, como se rezasse, depois saiu para a varanda. Eu o segui.
A lua estava alta, redonda, e iluminava o terreiro com uma luz prateada que refletia a mesma cor na lataria da caminhonete. O vento da noite trazia o cheiro de lenha queimada das casas vizinhas. Lá longe, algum cachorro latia. Danada, só cuidava dos filhotes. O bode chico depois de sua última pirraça, ainda estava de castigo amarado.
Tião olhou para o céu e disse, mais para si do que para mim:
— Sabe, a vida no campo é como levantar uma parede. A gente coloca um tijolo por dia. Às vezes chove, às vezes venta, mas se a base for firme, a casa aguenta.
Eu fiquei em silêncio. De volta ao quarto só fui apagar a vela quando o ponteiro do relógio se aproximava das onze. Fechei a porta devagar, com a sensação de que aquele dia tinha sido maior que o tempo que coube nele.
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