15 de julho de 2025
O sol nasceu cedo, ainda tímido por trás de algumas nuvens esparsas, mas já trazendo aquele calor típico que fazia a terra soltar um vapor leve, misturado ao perfume da grama úmida. As marcas da chuva forte, aquela mesma que no dia 12 havia virado a rotina de cabeça para baixo, ainda estavam por toda parte. O barro secava devagar, os galhos caídos esperavam por mãos que os retirassem, e a terra do plantio parecia estar respirando aliviada.
Pedro já estava no campo quando desci para o café. A vó mexia o bule de café preto no fogão a lenha, enquanto Dona Loudes cortava pedaços de bolo de fubá ainda quente. Tião conversava baixinho no canto, falando sobre o reforço que estavam fazendo na ponte quebrada.
Foi entre uma xícara e outra que Pedro chegou, tirando o chapéu e passando a mão na testa suada.
— A ponte tá quase pronta. Colocamos concreto nas cabeceiras e reforçamos as laterais. Se o tempo ajudar, até amanhã dá pra passar com o caminhão (este era emprestado até terminar o serviço da caminhonete que eu estava fazendo). Falou, com aquele jeito de quem gosta de ver as coisas funcionando. Mas antes que o clima de melhora se espalhasse, foi Tião quem trouxe a notícia amarga. — Recebi recado agora cedo, a festa de Santo Antônio foi cancelada.
O silêncio que se seguiu foi como um vento gelado atravessando a cozinha. A vó parou de mexer o café e ficou olhando para o bule como se procurasse nele uma explicação. Dona Lourdes respirou fundo e se apoiou na beirada da mesa.
— E por quê? Perguntou a vó, a voz quase sem força.
— O barracão caiu todo com a chuva, e o telhado da igrejinha também. Não vai dar pra fazer nada esse ano. Tião respondeu, com um tom de respeito, como quem dá uma notícia de luto.
A festa da comunidade era mais que um evento, era um marco no calendário, um ponto de encontro, um momento de ver parentes e amigos que o tempo e a distância afastavam. Era também promessa de risos, música, doces e histórias. O cancelamento, depois de dois anos de espera, caía como pedra no coração de todos.
A vó puxou uma cadeira e sentou, ajeitando o avental no colo.
— Santo Antônio vai entender, mas vai ser um ano mais comprido sem essa prosa com o povo. Falou, como quem falava mais consigo mesma que com a gente.
Dona Lourdes tentou esboçar um sorriso, mas os olhos denunciavam a tristeza.
— Eu já tinha separado o pano pra fazer as toalhas da barraca e o meu vestido, disse, mexendo nas mãos como se o pano ainda estivesse ali.
O resto da manhã foi de trabalho no campo. O sol agora já estava alto, e o calor fazia o suor escorrer pela testa. Pedro e Tião se dividiram: enquanto um cuidava de ajeitar as fileiras do plantio, o outro verificava o pasto. O estrago da chuva tinha sido grande, mas a terra, quando bem tratada, mostrava resiliência. O verde começava a se reerguer, e os brotos pareciam sedentos pela luz.
Matheus e Jonas ajudavam a carregar estacas para reforçar as cercas. Ao longe, o som das marretadas na ponte soavam, misturado ao canto de alguns pássaros que já voltavam a aparecer depois do temporal.
No intervalo do almoço, a conversa voltava sempre para a festa cancelada. Pedro tentava manter o tom otimista.
— O que a gente pode fazer é ajudar a reconstruir. O barracão dá pra levantar de novo, e o telhado da igreja, se cada um ajudar um pouco, até o fim do ano tá pronto.
Mas nem a disposição dele apagava a melancolia na expressão da vó. A festa era também um pedaço da memória dela, e vê-la suspensa assim era como cortar um fio que ligava o passado ao presente.
Dona Lourdes, enquanto lavava a louça, comentou comigo em voz baixa:
— É difícil, parece que a gente esperou o ano todo e a chuva levou embora em uma noite.
À tarde, todos se reuniram perto da ponte para ver o trabalho terminado. As cabeceiras agora estavam firmes, e a estrutura reforçada com concreto prometia aguentar outra cheia. As crianças testaram passando correndo de um lado para o outro, rindo como se fosse um brinquedo novo. No fundo, aquele pequeno conserto era um lembrete de que tudo podia ser reconstruído, com paciência e mão firme.
Voltamos para casa com o sol já começando a cair. No caminho, passamos pelo barracão destruído. Era triste de ver: as paredes de madeira estavam tombadas, o telhado espalhado pelo chão, e no centro, uma pilha de entulho onde antes ficavam as mesas e cadeiras. A igrejinha de Santo Antônio, logo ao lado, tinha a parte central do telhado aberta para o céu. O altar ainda estava de pé, protegido por uma lona improvisada, e a imagem do santo olhava para a frente com um semblante sereno, como se também esperasse pela próxima festa.
Quando chegamos, a vó foi direta para a varanda e ficou ali, olhando o horizonte. Sentei-me ao lado dela, sem dizer nada. Às vezes, o silêncio é mais respeitoso que qualquer palavra.
Dona Lourdes veio depois, trazendo uma garrafa de café e três xícaras. Sentou-se devagar, e as duas começaram a conversar sobre as festas antigas. Lembraram das quadrilhas, das barracas de doce, dos leilões que arrecadavam para a comunidade. Riam de algumas lembranças, mas sempre com aquele fundo de tristeza.
O sol agora se punha atrás das colinas, o céu já de um laranja intenso que se misturava ao azul. O cheiro de terra molhada, ainda presente, se mesclava ao perfume das flores do jardim. Ao longe, o gado mugia, e o som da água no riacho reforçado pela ponte completava o cenário.
Peguei meu caderno e comecei a escrever o dia, descrevendo não só os fatos, mas o peso que cada um carregava com a notícia. A vida na roça tem disso: a alegria e a tristeza caminham lado a lado, e cabe a nós aprender a respeitar o tempo de cada coisa.
Enquanto eu terminava, a vó encostou a mão sobre a minha e disse:
— Escreve aí, meu filho, que festa a gente faz no coração. E essa, ninguém tira.
Olhei para frente. O horizonte estava tão bonito que parecia pintado à mão. A luz suave iluminava as copas das árvores, e um bando de andorinhas cruzava o céu em voo sincronizado. Respirei fundo, guardei a caneta, e deixei que o resto da história ficasse guardado só ali, na varanda, para quem estivesse presente naquele momento.
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