13 de julho de 2025
O dia amanheceu como se quisesse pedir desculpas pela véspera. O sol apareceu cedo, forte, tingindo de ouro o terreiro ainda úmido. A grama parecia mais verde, o ar mais limpo, e até o canto dos passarinhos soava renovado. O cheiro de terra molhada ainda estava no ar, mas agora misturado ao de madeira molhada secando ao calor.
Do meu quarto, já sem febre, ouvi a movimentação no quintal. Tião e Pedro conversavam perto do galpão, as botas afundando na lama que o sol tentava transformar em barro firme.
— Hoje é dia de botar ordem na bagunça, Pedro. Disse Tião, ajeitando o chapéu. Não dá pra deixar o estrago crescer.
— Eu sei, homem, mas antes, vou precisar arrumar a cerca lá do pasto baixo. Os bois tão soltos demais, daqui a pouco invadem a fazenda dos vizinhos.
Lá da cozinha, vó Zulmira já fazia barulho com panelas. Dona Lourdes estava sentada à mesa, limpando feijão.
— Esses dois precisam comer antes de sair quebrando a coluna no serviço, disse vó, olhando para mim. — Vai lá chamar eles. — Vou nada. Respondeu Dona Lourdes. — Se chamar, eles fingem que não ouviram. Vou deixar eles voltarem com fome, aí comem quietos. As duas sorriram sabendo que era verdade.
O bode Chico resolveu inaugurar o dia do seu jeito. Apareceu do nada, subindo no telhado baixo do galpão das ferramentas, equilibrando-se como se fosse a coisa mais normal do mundo. Tião, ao ver, gritou:
— Desce daí, Chico! Tu quer quebrar o pescoço ou o telhado?
O bode só olhou, parou, e resolveu pular, direto em cima de um balde vazio, que rolou até bater no pé de Pedro.
— Eu vou vender esse bicho pra um circo, Pedro falou, rindo, mas tentando esconder a dor no pé.
As crianças, que se arrumavam para voltar à cidade, se juntaram para rir. Estavam no corredor, arrumando mochilas e malas. O barulho de zíperes, o cheiro de sabonete novo e o corre-corre de achar brinquedos esquecidos davam um ar de despedida que apertava o peito. Marina, com paciência, cuidava de Danada e seus filhotes. A cadela, deitada no canto da varanda, olhava desconfiada cada movimento, enquanto lambia um dos filhotes com carinho. Vendo o de perto, parecia o Capitão quando filhote, Tião comentou o dia antes. Ainda era visível a falta que o cachorro lhe fazia.
— Marina, não deixa as crianças mexerem demais nos bichinhos, alertou vó Zulmira. — É cedo ainda pra tirar eles do ninho.
— Tô de olho vó. Respondeu ela, acariciando a cabeça de Danada.
O sol, alto e impiedoso, fazia o barro soltar aquele vapor quente. Tião e Pedro começaram pelo galpão das codornas, onde o telhado cedeu. O reparo improvisado da véspera segurou a noite inteira, mas agora era hora de fazer direito. Pegaram madeira seca que estava guardada no celeiro e subiram no telhado, trocando as ripas quebradas.
— Pega a tábua menor, disse Tião, de cima da escada.
— Essa aqui? Pedro ergueu.
— Essa aí. A outra tá torta, parece até que o Chico já mordeu.
Eu, ainda sem força total, fiquei ajudando do chão, passando ferramentas, segurando tábuas. O som do martelo soava pelo quintal, junto com o zumbido das abelhas que já voltavam a visitar as flores depois da tempestade. O que me fez também lembrar de minha oficina, o som do martelo batendo na lataria amassada para deixar lá perfeita novamente.
— Perdro percebeu e disse:
— Preocupa não, já tem serviço pra tu. Ele e Tião sorriram
No meio da manhã, vó Zulmira apareceu na porta do galpão, com um pano cobrindo uma bandeja.
— Vocês acham que vão trabalhar sem comer? Tá aqui o café com bolo de milho.
— Agora falou minha língua, disse Pedro, descendo rápido da escada.
Tião, com prego na boca, desceu mais devagar, mas pegou logo dois pedaços de bolo.
— Esse aqui vai pra garantir energia. E riu. Enquanto comíamos, o sol brilhava sem dó. A água acumulada nos cantos ia sumindo, e o chão começava a firmar. Mas, junto com o calor, vinha a lembrança de tudo o que tinha se perdido. O plantio, apesar de não ter sido totalmente destruído, ia precisar de replantio em muitas partes.
No terreiro, as crianças já estavam todas prontas, com malas alinhadas perto da varanda. O ônibus passaria depois do almoço. Algumas estavam animadas para voltar à cidade, outras tentavam disfarçar a tristeza. Uma menina mais nova, sentada no degrau, segurava um filhote de pano como se fosse o último pedaço de casa que levaria consigo.
— Tá pronta, mocinha? — perguntei.
Ela balançou a cabeça. Eu gosto daqui.
— Então volta logo, respondi, sorrindo. — O campo sempre espera.
Pedro e Tião terminaram o serviço no galpão por volta do meio-dia. As codornas, alvoroçadas, já se acomodavam melhor, aproveitando a sombra e a comida seca que Marina tinha colocado. O bode Chico, agora mais calmo, ruminava amarrado a um poste, punição breve para evitar mais acrobacias perigosas.
O almoço foi em clima de despedida. Todos à mesa, falando ao mesmo tempo, lembrando histórias e rindo das trapalhadas do Chico e das corridas de Danada pelo pasto. Dona Lourdes servia arroz, feijão e frango caipira, enquanto vó Zulmira insistia para que todos comessem mais.
— Come, menino, que o sol tá de rachar. Dizia, colocando mais uma colher no prato de Pedro, que já estava cheio.
Quando o ronco do motor do ônibus ecoou ao longe, o terreiro se encheu de passos apressados. As malas foram erguidas, abraços dados, promessas de voltar logo trocadas. Danada ficou em pé na varanda, observando, enquanto os filhotes dormiam. O bode Chico berrou alto, como se quisesse se despedir também. Ou da uma cabeçada nos pequenos...
As crianças subiram no ônibus uma a uma, e o cheiro de poeira quente se misturou ao cheiro do diesel. O motorista acenou, e o veículo começou a se mover devagar pela estrada de terra.
Fiquei parado na varanda, observando o rastro de poeira que se levantava atrás dele. Lembrei do dia em que cheguei, também neste mesmo ônibus, com o coração dividido entre a novidade e a saudade. A febre tinha passado, e agora eu me sentia pronto para pegar no pesado. Ou no frango caipira que ainda cheirava...
Olhei para o galpão das codornas, ainda cheirando a madeira nova. Matheus e Jonas já me esperavam lá dentro, prontos para continuar o reparo. Respirei fundo o ar quente do meio-dia e desci os degraus, sentindo que, depois da tempestade e da despedida, era hora de recomeçar.
E assim é a vida no campo, no mesmo tom que se perde, ganha se nas notas do dia seguinte.
Capítulo 12 - 13 - Capítulo 14