Corvo do Silêncio
"Onde o mundo grita, o Corvo do Silêncio escreve, e no som das palavras, a alma desperta."
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Textos

Dia 12 – Cheiro de Terra Molhada 

Quando Chove Demais

 

11 de julho de 2025

 

O dia começou ainda no escuro, e já se ouvia a chuva batendo forte no telhado de zinco. Não era aquela chuvinha mansa que embala o sono, mas uma pancada firme, grossa, que fazia a água respingar para dentro pelas frestas das janelas mal vedadas. O barulho dos pingos era misturado ao estalar distante de trovões. Lá fora, o cheiro de terra molhada já dominava o ar, mesmo com a madrugada ainda agarrada ao chão.

 

Do lado de dentro, Tião já estava de pé, mexendo o café no fogão a lenha. A fumaça da chaleira se misturava ao vapor do ambiente úmido. Pedro, encostado no batente da porta, olhava a chuva cair no terreiro. As poças cresciam, unindo-se umas às outras até formarem um lago raso, mas agitado pelo vento.

 

— Isso vai dar problema lá na ponte pequena de novo, murmurou Tião, sem tirar os olhos da caneca de esmalte.

— Se a água subir mais, leva a ponte embora. Respondeu Pedro, ajeitando o chapéu que já estava molhado só de ficar ali.

 

A ponte ficava no caminho para o pasto baixo, uma construção simples de madeira que também era caminho para outros pontos do campo, boa para o dia a dia, mas frágil diante de uma enchente. Às sete da manhã, a chuva engrossou ainda mais. O vento veio em rajadas, inclinando as árvores e levantando telhas mais soltas. Um grupo de galinhas, assustado, corria em direção ao galpão, mas a enxurrada que descia pelo terreiro fez com que algumas recuassem. As crianças observavam da varanda, entre curiosas e amedrontadas, abraçadas em uma manta grossa.

 

— Hoje não é dia de pôr pé na terra, disse vó Zulmira, fechando a porta da cozinha para evitar que a corrente de vento apagasse o fogo.

 

Mas não tinha jeito. Tião e Pedro calçaram botas e foram verificar o estrago. Eu fui atrás, sentindo o barro pesado grudar no solado a cada passo. A água descia com força pelo caminho, levando gravetos, folhas e até pedaços de madeira. O som era de um rio improvisado correndo onde, horas antes, havia apenas estrada de chão.

 

Chegamos à ponte pequena, ou o que restava dela. Um dos apoios laterais o que tinha sido feito o serviço dias atrais, tinha cedido, arrastado pela correnteza agora mais forte. Tábuas estavam soltas, rodando na água turva.

 

— Já era. Disse Tião, o chapéu pingando. — Pra passar aqui agora, só quando o rio baixar e a gente arrumar isso.

Pedro chutou um pedaço de tronco que vinha descendo.

 

— Tomara que os bois não tenham atravessado pro outro lado ontem. Ou teremos mais vacas atoladas. Disse apontando duas vacas que se abrigava da chuva num cocho improvisado.

 

Voltamos pela estrada, lutando contra o vento. Algumas árvores pequenas estavam tombadas, e os galhos das maiores rangiam alto. Quando passamos pelo galpão das codornas, Tião parou. Uma parte do telhado tinha cedido, provavelmente pela água acumulada ou o vento forte. O barulho das aves presas e molhadas cortava o coração. Corremos para ajudar.

 

Empilhamos tábuas para improvisar um reparo rápido. O cheiro de palha encharcada e de penas molhadas misturava-se com o ar frio. Pedro pegou duas codornas que tinham se soltado e as devolveu ao cercado interno. As crianças, que tinham nos seguido, ajudaram trazendo baldes para tirar a água acumulada.

 

A chuva não dava trégua. Por volta das dez, o vento soprou mais forte que antes, levantando folhas molhadas como se fosse um turbilhão. A plantação, recém-feita na noite anterior, estava com a terra revolvida, e alguns sulcos já não existiam mais, apagados pelo excesso de água. Tião se agachou, passou a mão na lama, e balançou a cabeça:

 

— Muita semente vai apodrecer. Só o que estiver em parte mais alta vai vingar.

O sentimento de perda não se falava em voz alta, mas estava ali, pairando como a própria umidade no ar.

 

No pasto, os bois estavam espalhados, impossíveis de manter no curral, a água já tinha tomado o chão lá dentro, transformando-o num atoleiro perigoso. Alguns animais buscavam abrigo embaixo das árvores mais grossas, enquanto outros simplesmente se deixavam molhar, ruminando como se pedisse ajuda.

 

O relógio da cozinha marcava quase meio-dia quando, finalmente, a chuva começou a perder força. Não parou, mas mudou de pancada para um ritmo constante, grosso o suficiente para manter tudo molhado, mas sem os relâmpagos e ventos violentos. O cheiro de terra molhada era mais intenso, carregando consigo um ar de limpeza e, ao mesmo tempo, de destruição.

 

Fizemos uma pausa para almoçar, comida simples, mas quente, e secar as roupas. O barulho da chuva lá fora continuava, como um pano de fundo que não queria sumir.

 

Por volta das duas da tarde, voltamos a percorrer a propriedade para ver os danos. O plantio, de fato, tinha sofrido. Algumas fileiras ainda estavam firmes, mas boa parte parecia ter sido arrastada pela água. O galpão das codornas estava com reparo provisório, mas precisaria de obra de verdade. O pasto estava encharcado, e a cerca baixa, perto da mata, tinha cedido em um ponto, provavelmente por onde os bois tinham escapado ao saírem do curral.

 

A estrada de acesso estava quase intransitável, com valas abertas pela enxurrada. O que mais chamava atenção, porém, era o rastro da água: marcas de folhas presas às cercas, galhos empilhados em cantos, e o barro pintando tudo de marrom.

 

Quase seis horas depois do início, a chuva finalmente deu sinais de que ia parar. As últimas nuvens pesadas se afastavam lentamente, deixando para trás um céu baixo e cinzento. O vento agora era apenas uma brisa fria, mas o estrago estava feito.

 

Caminhando de volta para casa, passei pelo terreiro e ouvi o estalo seco de madeira. Olhei para o lado e vi um galho grosso da mangueira se desprender do tronco e cair com força. O impacto fez a água acumulada nas folhas se espalhar no ar. Quando o som da queda cessou, subiu uma mistura de cheiro doce da mangueira com o anuncio de algo acontecido, foi que percebi o pior: o galho tinha caído em cheio sobre a cabine da caminhonete.

 

O som do amassado foi seco, metálico abafado pelo som dos galhos da mangueira. Tião, que vinha logo atrás, apenas fechou os olhos por um instante, como quem contava até dez para não xingar. Pedro chegou e passou à mão pelo capô molhado e todo amassado, avaliando o estrago. Ele olhou para mim como quem diz: serviço pra tu Mano. A chuva, que agora era só um chuvisco, parecia zombar, caindo lenta e fina sobre a cena.

 

Aquele dia tinha sido uma lição silenciosa do campo: a chuva que alimenta é a mesma que destrói, e o que ela leva embora, nem sempre devolve. No cheiro de terra molhada, havia vida e havia perda, juntas, como sempre foi.

 

O resto do dia foi pra avaliar o estrago e noite para repousar, pois o dia seguinte seria de concerto.

 

Capítulo 11 - 12 - Capítulo 13

 

Corvo do Silêncio
Enviado por Corvo do Silêncio em 09/08/2025
Alterado em 14/08/2025
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