Ontem não foi um bom dia para Tião. A perda do Capitão ainda estava viva no olhar dele, como se cada lembrança viesse com um peso. Eu não o conhecia de perto, só de ouvir falar. Pedro, sempre que ia à cidade, dava um pulo na minha oficina, sim, tenho uma oficina automotiva, e, entre uma troca de peça e outra, falávamos do campo. Recordávamos também um pouco do nosso tempo na antiga VARIG (quem não lembra?). No fim de cada conversa, sem falta, ele puxava o assunto: Tião.
— Melhor vaqueiro que já conheci. Dizia.
E sempre que eu entregava o serviço, anunciando:
— Serviço terminado, Pedro.
Ele respondia:
— Quando cê for no campo, eu te pago.
E partia levando com ele a certeza de que a cidade não fazia falta. Mas deixava comigo outra certeza: que o campo me fazia falta.
— Bora, Pedro! Cê tá atrasado. Vamos preparar as sementes! A voz rouca de Tião soou pelo terreiro, firme, mas sem pressa.
— Tô indo! Respondeu Pedro, ajeitando o chapéu.
— Foi a voz de Tião que eu ouvi? Perguntou vó Zulmira, da varanda.
— Sim, mãe. Disse Pedro, indo ao encontro dele.
Fomos todos em direção ao pequeno celeiro, aquele com cheiro de madeira antiga e palha seca. Foi então que o encrenqueiro oficial da fazenda entrou em cena. O bode Chico veio trotando rápido e… BAM! Uma cabeçada certeira em Pedro. As crianças, que faziam suas tarefas na varanda, largaram os cadernos para gargalhar. E eu também, não nego.
— Quando for tua vez de pegar a cabeçada do Chico, eu vou soltar é rojão! Pedro falou rindo, enquanto Tião o ajudava a se levantar.
Tião ria, mas com aquele jeito dele de rir mais com os olhos do que com a boca.
O impressionante é que o Chico não batia e saía correndo como qualquer bode. Não. Ele ficava ali, firme, olhando para a vítima, com as pernas ligeiramente abertas, como se desafiasse: Vai querer mais uma? E se alguém desse um passo na direção dele, ele abaixava a cabeça devagar, pronto para outra investida.
Eu não estava me sentindo bem, segundo dia de febre por causa da gripe, mas não quis ficar de fora. O trabalho de plantar à noite era coisa séria e, segundo Tião, tinha um segredo que vinha de famílias a gerações.
— Olha, meu amigo, começou Tião, tirando o pacote de sementes de feijão. — Tem planta que gosta do sol pra nascer forte. Outras, como milho, feijão e abóbora, pegam melhor quando a lua tá alta e clara. — E isso é lenda ou ciência, Tião? Perguntei.
Ele sorriu, ajeitando a enxada no ombro:
— Pra quem é da roça, é certeza. Pra quem não acredita, que seja lenda, mas lenda que enche o paiol. Até Pedro que ia mais a frente sorriu.
Saímos para o terreiro e seguimos para a horta no fundo. O céu estava limpo, exceto por algumas nuvens finas que deslizavam preguiçosas. A lua, quase cheia, banhava o campo com uma luz prateada que fazia as folhas brilharem como se tivessem sido polidas. As estrelas se espalhavam no firmamento, e dava pra ver a Via Láctea cortava o céu como um rio de pó brilhante (não é só Tião que exagera na explicação, kkk). O ar fresco da noite carregava o cheiro da terra molhada, ainda marcada pelo sereno.
Pedro abriu o saco com cuidado. As sementes caíram na palma da mão, pequenas promessas de vida. Tião começou o plantio, abrindo covas rasas com a enxada.
— Aqui vai milho, duas sementes por cova. Dizia, com a segurança de quem já fez isso centenas de vezes.
Eu ajudava, ainda meio fraco, mas sentindo o corpo ganhar energia com aquele contato com a terra.
— E o feijão, Tião? Perguntei.
— Feijão gosta de lua crescente. Se planta hoje, quando a seiva tá subindo, ele nasce viçoso e dá mais vagem. Minha vó dizia que é porque a lua puxa a força da planta pra cima, igual puxa a maré do mar.
Pedro ria: — E se for mentira, pelo menos a gente trabalhou debaixo desse céu bonito.
O silêncio da noite era quebrado apenas pelo som das enxadas batendo na terra e, ao longe, o coaxar dos sapos perto do brejo. Até Chico estava quieto, deitado, observando como se fosse o fiscal da lavoura. De vez em quando, as crianças vinham correndo, perguntando se podiam ajudar, e Tião, paciente, deixava que elas jogassem uma ou duas sementes nas covas.
O trabalho seguiu por horas. A cada linha de plantio concluída, Tião fazia um gesto rápido de bênção com o chapéu na direção da lua, algo entre superstição e gratidão.
— Isso aqui, meu amigo, é plantar com a lua. É plantar com fé. Disse ele, batendo a enxada no chão.
Encerramos quase perto da meia-noite. Ficamos um momento parados, respirando o ar fresco, olhando a plantação recém-feita sob o luar. O sereno começava a cair mais forte, deixando a terra escura e macia.
Foi então que o silêncio foi cortado pelo latido de Danada, vindo do lado da mata. Não era um latido qualquer, era aquele mais curto e insistente, de quem sente cheiro de caça. Tião ficou sério.
— Ela não late assim à toa, disse, virando o rosto na direção da mata.
Pedro ajeitou o chapéu, e todos ficamos em silêncio, atentos. A lua iluminava a linha escura das árvores, mas nada se movia. Apenas o vento leve, balançando as folhas. O campo tem dessas coisas; paz e alerta, tudo ao mesmo tempo.
Eu, mesmo com febre, senti um arrepio. Não era só o frio da noite, era aquela certeza de que a vida ali corria num compasso próprio, onde cada som e cada silêncio tinham significado. E, naquela madrugada, pouco mais da meia noite e com a lua como testemunha, tínhamos feito mais do que plantar sementes. Tínhamos plantado histórias.
O latido não era nada grave, provavelmente alguma mucura, pois não muito longe dali era o celeiro das galinhas.
Ao voltar vó e dona Loudes nos esperavam, uma prosa rápida e logo todos estavam em seus camas ou redes. Deitado em minha rede depois de um banho e um chá forte de casca de limão, laranja e mel, foi que comecei este rascunho, e quando terminei olhei para a lua solitária lá em cima.
Assim terminou mais um dia no campo
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