Corvo do Silêncio
"Onde o mundo grita, o Corvo do Silêncio escreve, e no som das palavras, a alma desperta."
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Textos

Quando o silêncio também fala mais alto

10 de Julho de 2025

 

A caminhonete ainda nem tinha estacionado direito no terreiro, quando a notícia chegou como vento seco em dia quente: o Capitão não resistiu.

 

Tião desceu da carroceria calado. O rosto que geralmente carregava um sorriso tímido, agora trazia uma sombra funda nos olhos. Mal tirou o chapéu da cabeça. Caminhou devagar até a corda esticada entre os mourões da mangueira, onde costumava deixar o Capitão deitado à sombra. O espaço estava vazio, e o silêncio parecia respeitar o luto.

 

Na lembrança, o cachorro valente que enfrentou a onça com coragem pra salvar o bezerro. Nos olhos de Tião, a imagem do amigo caído, a pele ferida, o sangue seco, e agora, a ausência. Sentou-se no chão, encostado ao tronco grosso da mangueira, sem dizer palavra. O cheiro da terra misturado à tristeza parecia apertar o peito.

 

Na casa, a rotina de um domingo se desenrolava como manda a tradição da roça. Dona Loudes e vó Zulmira comandavam o fogão a lenha, cuidando do almoço como duas arquitetas de projeto futurista. Os tachos ferviam, o cheiro de alho frito e carne cozinhando se espalhava. As galinhas ciscavam no terreiro, e o bode Chico corria atrás das crianças, arrancando gritos e risadas.

 

Jonas e Matheus deram ração aos porcos e checaram a porteira do curral. Marina cortava legumes enquanto vigiava os filhotes de Danada, que dormiam amontoados num cesto forrado de panos velhos. Maria, ainda com sono nos olhos, ajudava entre bocejos e risadinhas.

 

Ao meio-dia, o sino da cozinha, um velho talher amarrado com arame, anunciou o almoço. Todos se reuniram na mesa longa da varanda. Faltava apenas Tião, cujo prato ficou ali, intocado. Pedro, percebendo o vazio da cadeira, colocou o almoço em uma quentinha e foi até a mangueira. Encontrou Tião sentado, chapéu na mão, olhando pro chão como se pudesse ver Capitão.

 

Sem dizer nada, Pedro colocou a marmita ao lado dele, deu um leve tapinha no ombro e voltou. Tião não tocou na comida. Continuou quieto, os olhos presos num ponto entre o passado e o agora.

 

Depois do almoço, as redes balançavam na varanda. Dona Loudes lavava as panelas, a espuma escorrendo como a tarde que começava a descansar. Vó Zulmira, sempre animada, organizava as pedras de dominó sobre a toalha de chita, ajeitando os óculos no nariz. As crianças, já cansadas da correria, se reuniam diante da televisão pra assistir O Rei Leão, com olhos brilhando nas cenas do pequeno Simba, talvez, sem entender ainda o que é perder alguém.

 

Jonas e Matheus pegaram varas e foram pescar no açude. Eu também iria, mas a gripe me derrubou. Fiquei ali, observando a cena pela janela do quarto, com o corpo quente de febre, mas o coração atento a tudo.

 

Pedro, mais tarde, voltou à mangueira. Encontrou Tião no mesmo lugar. O sol já começava a cair por trás do monte distante que chamam de Serra da Lua. O nome é antigo, dizem que o formato dela lembra mesmo a lua. E naquele fim de tarde, banhada num dourado que só o campo conhece, a serra parecia suspirar junto com o dia.

 

O céu pintado em laranja encerrava o domingo, e a brisa leve trazia o cheiro da comida do almoço misturado ao silêncio que vinha da mangueira.

 

Antes de escurecer por completo, Tião levantou, limpou as calças com as mãos sujas de terra e olhou pro céu. Então falou, num tom baixo, mas firme, como quem cava palavras no chão duro da vida:

 

— Ô Capitão, cê foi mais que cachorro. Foi amigo mesmo. Daqueles que não fala, mas entende. Tava sempre comigo, no mato, na lida, no frio da noite. Ocê me deu alegria quando eu só tinha silêncio. Agora, ficou só o silêncio outra vez. Mas valeu, viu? Ocê foi valente até o fim, e isso, Capitão, eu num vô esquecê nunca. Nunca mesmo.

 

Depois disso, Tião pegou o chapéu, ajeitou na cabeça e caminhou devagar em direção à casa, deixando pra trás a sombra da mangueira e o vazio que só o campo sabe guardar.

 

 

Capítulo 9 - 10 - Capítulo 11

 

Corvo do Silêncio
Enviado por Corvo do Silêncio em 05/08/2025
Alterado em 08/08/2025
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