Corvo do Silêncio
"Onde o mundo grita, o Corvo do Silêncio escreve, e no som das palavras, a alma desperta."
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Textos

Dia - 9 - Dia de Feira na Cidade

Entre cheiros, vozes e sonhos embalados na poeira

 

09 de julho de 2025

 

O dia amanheceu com um sereno fino, daqueles que só molham a alma. A névoa leve descia das serras, e um véu branco dançava sobre os capins, ainda orvalhados pela madrugada. As folhas das mangueiras pingavam devagar, como se chorassem o sono interrompido. O cheiro da terra molhada ainda persistia do dia anterior, como uma promessa de renascimento. Os galos mal tinham cantado e já se ouvia barulho na cozinha.

 

Naquele canto de mundo, dia de feira era mais que rotina: era tradição. E para dona Loudes e vó Zulmira, era sagrado, chovesse pedra ou ventasse poeira.

 

Lá vinha dona Loudes, de botina curta e vestido florido, os cabelos presos num rabo de cavalo que parecia esculpido com carinho. A leiteira fumegava nas mãos firmes. Aos 42 anos, tinha o vigor de uma mulher que nunca deixou a lida lhe vencer. Nascera na Itália, viera para o Brasil aos 17, casara-se cedo, aos 21, mas a união não durara nem um ano. Nunca tivera filhos. Conhecera vó Zulmira na banca de tomates da feira, anos atrás. Desde então, vivia ali como filha, e era parte do chão daquela casa.

 

Enquanto subia os degraus do alpendre, o bode Chico a observava em silêncio, coisa rara. Não ousava enfrentá-la. Era como se reconhecesse nela uma autoridade que nem Pedro questionava. As cabras já estavam soltas e o leite já pronto antes mesmo do café coar.

 

Na cozinha, vó Zulmira, aos seus respeitáveis 62 anos, mexia a colher de pau no tacho com precisão de quem sempre soube o que fazer. O cheiro de café fresco já dominava o ambiente. Ela vestia um avental florido, e seu cabelo branco, trançado como nos tempos de moça, denunciava sua firmeza.

 

Tião surgiu encostado no batente da porta com o chapéu na mão:

 

— A caminhonete tá pronta, vó. Só esperando as senhoras.

 

Pedro apareceu ajeitando a camisa de linho, limpando os óculos com um lenço. Chamou Jonas e Matheus e disse com seriedade:

 

— Não esqueçam de limpar os ferimentos do Capitão. O bezerro também precisa de cuidado. Marina se ofereceu pra olhar Danada, que ainda respirava com esforço, cuidando dos seis filhotes recém-nascidos no dia seguinte ao ataque da onça.

 

Maria, que mal abrira os olhos, bocejou com gosto e murmurou:

 

— Eu cuido dos pequenos, mas só se o café estiver doce.

 

Foi quando o galo cantou. Pela primeira vez desde minha chegada, ouvi aquele canto como um toque de alvorada. Um chamado para a vida rural, para o despertar da simplicidade.

 

Às cinco em ponto, vó Zulmira gritou da porta:

 

— Bora! Já tamo atrasada!

 

Dona Loudes ajeitou com cuidado a alça da bolsa de palha no ombro e subiu na caminhonete ao lado de vó Zulmira. Tião girou a chave e o motor respondeu rouco, mas firme. O veículo partiu devagar, vencendo os primeiros metros da estrada de chão ainda úmida do sereno da madrugada. A cada volta do pneu, pequenas gotas de orvalho se desprendiam das folhas dos capins altos, como se a natureza espantasse o sono. A caminhonete avançava entre o verde brilhante das cercas vivas, e o ar fresco da manhã, levemente perfumado pela terra molhada, acompanhava o balanço do carro como um suspiro tranquilo de quem conhece o caminho.

 

O destino era a Feira do Produtor Rural, na avenida Ataíde Teive, em Boa Vista. Era dia de comprar os preparativos para a festa da comunidade. O mercado fervilhava. As lojas, de um lado e de outro, abriam cedo. Havia cheiro de bolo de milho, queijo fresco e banana frita. Peixes ainda vivos saltavam nos baldes. Senhoras vendiam fitas coloridas para enfeites. Crianças corriam com sacolas de pão. Ria-se alto, barganhava-se baixinho.

 

Dona Loudes foi direto à banca da dona Carmosa, comprar as fitas para a ornamentação. Vó Zulmira parou para ver as galinhas, mas o preço estava salgado.

 

— Com esse preço, a galinha já devia vir depenada e cozida, resmungou, arrancando risos ao redor.

 

Tião se separou do grupo e foi buscar sementes para plantar no próximo ciclo. Distraído, cruzou o olhar com dona Loudes que sorria ao ver uma panela de barro igual à que sua mãe usava na infância. Ele corou e fingiu que procurava algo na vitrine.

 

De longe, dava pra ouvir os alto-falantes anunciando:

 

— Hoje, além da feira, comemoramos o aniversário da nossa capital, Boa Vista. Parabéns, Roraima! A cidade pulsava. Mas mesmo ali, entre tantos, eles ainda traziam o campo dentro de si. Era como se cada cheiro de queijo, cada grito de vendedor, cada mão calejada que cumprimentavam fosse um som da vida que levavam, do suor que derramavam sob o céu aberto.

 

Por volta das nove, o calor já dominava. Dona Loudes ajeitava os sacos na carroceria. Vó Zulmira tirava da bolsa uma garrafinha de café. Sentaram-se por alguns minutos num banco de madeira ao lado da feira.

 

— Ainda bem que viemos cedo. Vai chover de novo logo mais, disse Loudes olhando o céu que já desenhava nuvens lentas.

 

E como quem volta pra vida, Tião apareceu com um sorriso tímido e uma sacola com mudas de erva-doce. Entregou a Loudes sem dizer uma palavra.

 

Ela sorriu.

 

Às dez e meia, a caminhonete voltou a sacolejar estrada adentro. O sol já era forte, mas o vento trazia um presságio de trovoada. E enquanto o pó subia da estrada vermelha, eu, sentado no banco de trás, apenas observava. Ali, entre as sacolas e os risos, havia mais do que compras de feira. Havia histórias plantadas, sentimentos enraizados. Havia, sobretudo, um pedaço de Brasil que muita gente esquece, mas que ali, naquele pedaço de cão em Roraima, resistia com toda sua beleza e dignidade.

 

— Eu pensei que tu fosse ficar homem da cidade. Falou vó me passando a sacola dos morangos.

 

Capítulo 8 - 9 - Capítulo 10

 

Corvo do Silêncio
Enviado por Corvo do Silêncio em 04/08/2025
Alterado em 07/08/2025
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