08 de julho de 2025
A noite anterior havia deixado um gosto amargo. O ar da manhã parecia carregar o peso do silêncio que pairava na casa. Ninguém dormira direito. A lembrança da vaca caída, a certeza da presença da onça e, acima de tudo, a ausência de Capitão e Danada, esses dois nomes se repetiam em nossos pensamentos como uma reza sufocada.
A mesa do café da manhã, que nos outros dias era viva com risadas, pão de sal, bolo de milho e aquele cheiro de café forte que acordava até a alma, agora estava diferente.
O pano florido parecia mais velho. Havia apenas uma garrafa de café morno, dois pedaços de bolo embatumado de ontem, algumas fatias de queijo que ninguém tocava. A ausência dos cachorros era sentida até pela comida que não precisava mais ser dividida.
Pedro, em silêncio, preparava a sela no alpendre. Seus movimentos eram firmes, mas os olhos denunciavam a preocupação. Tião, ao lado do curral, alisava o pelo do seu manga-larga como se ali pudesse tirar o peso do peito.
Jonas chegou com três vizinhos das fazendas próximas. Homens acostumados ao mato, vinham armados, com olhos duros de quem entende a urgência. Ninguém comentou sobre o café. Nem o cheiro quente da bebida, que começava a se espalhar de novo pela casa, foi suficiente para quebrar a marcha dos que queriam ir atrás da onça.
Foi então que o sol apareceu de verdade, como um clarão de lembrança boa. A luz da manhã bateu direto na estrada de barro e nos fez ouvir antes de ver: o ronco do ônibus velho. Um barulho áspero, cansado, que cortava a estrada com a poeira subindo como névoa.
— Vixe, olha o ônibus aí! Tião gritou, erguendo o chapéu para fazer sombra nos olhos.
Pedro levantou a mão para os outros homens e disse:
— Espera só um instante. É minha família que tá chegando. As meninas e os meninos...
O ônibus parou diante da porteira da fazenda, a lataria rangendo como se pedisse descanso. A porta se abriu com um estalo e, aos poucos, desceram as crianças, quatro, cinco... seis delas. As irmãs de Pedro logo vieram atrás, com sacolas, cestos e aquele cheiro de cidade que se mistura com poeira de estrada.
— Pedro, ô menino bom! Gritou Maria, a mais velha, abrindo os braços.
E quem foi lá recepcioná-los todo empolgado? O bode Chico, claro. Saiu como um raio de trás do galinheiro, bufando, pulando, indo em direção aos visitantes como se fosse o dono da casa. As crianças riram, gritaram, se esconderam atrás das saias das mães.
— Lá vem o bode! Exclamou uma das meninas.
Mas antes que causasse confusão, Jonas o segurou pelas pontas do chifre:
— Calma, Chico, aqui não é seu curral.
Na varanda, Dona Loudes já colocava mais café no fogo, enquanto vó Zulmira arrumava copos de alumínio sobre a mesa. As irmãs de Pedro entraram e logo estavam em prosa.
— Essa casa ainda cheira a infância, disse Marina, olhando em volta.
— E a café forte, como o pai gostava, completou Maria.
A conversa se desenrolava com afeto, quando vó Zulmira comentou:
— A noite foi de aperto, viu... A onça levou um bezerro e os cachorros sumiram.
As mulheres se calaram por um momento.
— Capitão e Danada? Perguntou Marina, com expressão de incredulidade.
Pedro abaixou a cabeça. A dor ainda era recente.
Foi nesse momento que Dona Loudes, que estava na cozinha, gritou:
— Pedro! Pedro! Escuta só!
Um silêncio se espalhou por segundos.
E então todos ouviram. Um latido, fraco, mas contínuo, vindo do lado do curral.
Tião, que estava do lado de fora com os outros homens, levantou a cabeça. Seus olhos se arregalaram:
— É Danada!
De onde estava, Pé de Cedro, seu cavalo, relinchou e bateu o casco no chão como se soubesse o caminho de onde vinha o latido.
Todos correram em direção à cerca da pastagem. E foi então que viram a cena.
O bezerro vinha primeiro, cambaleando, com um corte profundo no pescoço. O mugido era baixo, rouco, como se cada passo custasse sua última força. Atrás dele, Danada, ofegante, guiava o pequeno com latidos firmes. Sua barriga inchada denunciava os filhotes por nascer. E, um pouco mais atrás, mancando com esforço desesperado, vinha Capitão.
O cachorro cambaleava. Estava coberto de terra, sangue seco e folhas grudadas ao pelo. Um corte feio atravessava sua barriga. Outro, no pescoço, mostrava a gravidade da luta que tivera.
Quando Tião o viu, seu corpo congelou. Não disse nada, apenas se ajoelhou ali mesmo. Capitão, ao reconhecê-lo, forçou os últimos passos. Suas patas dianteiras falharam e ele caiu rente ao corpo do homem que o criou.
Tião o acolheu no colo, lágrimas escorrendo:
— Ô meu véi. Voltou. Voltou...
Pedro segurava o bezerro enquanto Danada se deitava ao lado, arfando, mas sem ferimentos visíveis. Jonas chegou com uma toalha, cobriu Capitão com cuidado.
— Esse bicho é guerreiro, disse em voz baixa. As crianças, que vinham correndo atrás do alvoroço, pararam ao ver a cena. Algumas taparam a boca com as mãos. Uma delas, com os olhos marejados, disse:
— Ele voltou pra casa mãe...
Dentro da casa, vó Zulmira segurava um terço. Dona Loudes emocionada chorava em silêncio. Maria e Marina se abraçaram. (Marina foi a pessoa que deu Capitão para Tião cuidar que escreverei mais a frente)
O sol, que brilhava forte, começou a se esconder atrás de uma nuvem espessa. Pouco depois, o cheiro da chuva chegou de novo.
Cheiro de terra molhada. Aquela mesma fragrância que me acolheu quando cheguei. Agora não era mais só cheiro de chuva, era cheiro de volta, de esperança, de amor ao que se perde e ao que se reencontra.
E enquanto o céu despejava sua água sobre a roça, eu, que tudo observava e feliz com os animais que voltaram, entendi que o campo também tem seus milagres para quem acredita. E naquela noite Tião acreditou tanto que não dormiu.
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