07 de julho de 2025
A manhã nasceu silenciosa, com um véu fino de neblina por sobre o pasto, como se o campo quisesse esconder algo. Acordamos antes do sol se levantar por inteiro, e logo o cheiro do café quente, do bolo de fubá e do leite recém-tirado espalhou-se pela cozinha. A mesa de madeira, marcada pelo tempo, já estava posta com fartura que só vó Zulmira sabia preparar: pão de sal assado no forno à lenha, queijo fresco ainda suando, mandioca cozida, mel de engenho e ovos fritos na banha.
Pedro cortava o pão como quem cortava uma lembrança antiga, e Tião já havia colocado o chapéu de palha antes mesmo de terminar o café. Jonas e Matheus conversavam baixo sobre as pegadas estranhas encontradas dois dias antes, perto da cerca dos fundos. O assunto era sempre o mesmo nos últimos tempos: algum bicho rondando demais, galinhas sumindo, e aquele silêncio estranho durante a noite.
— Vamos ver a cerca lá pros lados do Capão dos Inácios, disse Pedro, puxando o mosquetão para o coldre, como quem espera tudo e nada ao mesmo tempo.
Saíram em silêncio. O tipo de silêncio que só o campo entende: o da escuta aguçada, do mato se abrindo aos poucos, dos olhos que varrem o chão à procura de pegadas. O tempo estava firme, um sol bonito escorrendo pelas folhas dos ipês floridos, e até os passarinhos cantavam como se não soubessem de nada.
Ao meio-dia, o cheiro do feijão com carne de sol cozinhando já fazia cócegas no estômago. Dona Loudes ajudava vó Zulmira na cozinha, e entre um tempero e outro, conversavam sobre a festa da comunidade que se aproximava.
— Eu ainda vou costurar o vestido azul pra festa, dizia Loudes, tirando a panela do fogo. — Aquele tecido que comprei em abril tá guardado, esperando coragem. E enquanto elas falavam, de fininho eu tirava uma fatia de bolo. É, dessa vez não fui a procura das pegadas, havia levado uma cabeçada do bode Chico, e a perna ainda doía.
— Vai ver nem é coragem que falta, é tempo mesmo, respondeu vó, sorrindo com o canto dos olhos. — Mas se tu não fores com aquele azul, não vai ter graça nenhuma. E mais uma fatia de bolo e uma xícara de café.
Rimos todos ao redor da mesa. A conversa era leve, como se a tensão dos últimos dias fosse apenas uma lembrança esquecida no varal. Mal sabíamos o que a noite nos traria. E Antes de sair, uma fatia de bolo de fubá não faz mal a ninguém.
Já passava da meia-noite quando os latidos começaram. Primeiro, um rosnado rouco. Depois, o latido agudo e desesperado que só se ouve quando algo está realmente errado.
— Capitão! Danada! Gritou Matheus, calçando as botas apressado.
Saímos todos, com lanternas e armas em punho. O mato em volta da casa parecia mais escuro que o normal. As lanternas tremiam nas nossas mãos, jogando sombras nas árvores, nos galhos, no chão de terra úmida. Foi Pedro quem viu primeiro. Uma vaca de leite caída, o pescoço aberto como um rasgo de navalha. Sangue escorrendo grosso, formando uma poça escura que cheirava a ferro e tristeza. Os olhos da vaca ainda abertos, olhando para o nada, como se não entendesse o que lhe havia acontecido.
— Foi onça. Disse Pedro, se ajoelhando ao lado do animal. — Olha aqui as pegadas, tem pelo no arame da cerca.
Tião baixou os olhos, engoliu em seco. O campo tem dessas coisas: dá a vida e tira também. Mas nunca se acostuma.
— Cadê o bezerro dela? Perguntou Jonas, olhando em volta.
O silêncio que veio depois foi mais barulhento que qualquer grito. Procuramos ao redor, mas não havia sinal. Nem um mugido, nem uma pegada miúda. Apenas os rastros fundos da onça e o cheiro forte de medo no ar.
Sem pensar duas vezes, pegamos mais lanternas, dois rifles e seguimos em direção ao final da cerca, onde começa a mata fechada. O caminho era estreito, de terra batida, com os cipós arranhando os braços e o coração apertado no peito.
Caminhamos em silêncio, apenas as lanternas furando a escuridão e os galhos estalando sob os pés. Cada folha mexida parecia um vulto. Cada som, uma ameaça. Mas não encontramos nada. Nem o bezerro. Nem a onça. Só o mato, quieto, como se tivesse engolido tudo e agora ruminasse em silêncio.
Voltamos cansados, sujos, e mais calados do que nunca. O cheiro do sangue da vaca ainda grudado nas narinas, o gosto amargo da impotência nos olhos vermelhos de cansaço. Entramos no alpendre com as botas pesadas, e Pedro parou de repente.
— Cadê Capitão e Danada?
Olhei em volta. Chamei pelos nomes deles, o assobio soando no terreiro vazio.
Nada.
A ausência deles doía como a perda de um parente. Porque no campo, bicho de estimação é da família. E aqueles dois cachorros eram mais que fiéis, eram guardiões da casa, companheiros de todas as horas.
— Eles foram atrás da onça, foi isso, disse Matheus, com a voz embargada.
Ficamos ali parados, no escuro, olhando para o mato, como se de alguma forma pudéssemos vê-los voltando. Mas só o vento balançava as árvores, e uma coruja piava longe, como um lamento.
Naquela noite, ninguém dormiu direito. Vó Zulmira rezava baixinho no quarto, com o terço nas mãos trêmulas. Dona Loudes preparava um café mansinho, lembrando do bezerro que ela mesma havia ajudado a nascer. E eu, eu fiquei deitado, olhos abertos no teto de madeira, com o som dos latidos ainda nos ouvidos, como um som que não queria ir embora.
Afinal, Capitão e Danada foram os primeiros a me acordar no meu segundo dia na fazenda.
O campo tem dessas coisas: ensina a viver, mas também a perder. Ensina que tudo tem seu tempo, mas nunca diz quando esse tempo vai acabar. A gente aprende a sorrir com a colheita, mas também a chorar com as feras da mata.
Alguns dormiram. Mais Tião continuou ali a espera de Capitão e Danada. Era nítida a esperança dele.
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