Dia 06 de julho de 2025,
Duas da tarde. O sol rachava as costas com gosto, desses que fazem a camisa colar no corpo e a água do cantil parecer benção. A tarde tinha aquele amarelo queimado de verão fora de época, e o chão, embora seco por cima, ainda guardava umidade sob a primeira camada, herança das chuvas dos dias anteriores.
Do alpendre, escutei o som grave da enxada encontrando a terra. Um som que só quem é de roça entende: é como se a terra respirasse com cada golpe, se abrindo devagar pra receber o novo. Fui até o quarto, peguei o caderno, o chapéu de palha, e caminhei até a porteira do curral, onde me sentei sobre uma das tábuas grossas. Ali, com vista aberta pra horta, a pastagem e os fundos do terreiro, comecei a escrever. A mangueira alta me dava a sombra necessária de que precisava.
Tião e Matheus já estavam no eito desde o fim do almoço. Dois homens de pouco falar, mas com as mãos cheias de história. Tião, com a pele curtida de sol e os olhos fundos de quem aprendeu mais com o chão do que com os livros. Matheus, mais novo, calado, mas atento a tudo. Trabalhava com respeito, como quem entende que lavrar não é só plantar, é conversar com a terra. As ferramentas eram as mesmas de sempre: enxada, enxadão, foice e ancinho. Nenhuma tecnologia, nenhuma máquina moderna. Só braço, suor e tempo. E uma cadência que hipnotizava: duas passadas, golpe. Duas passadas, golpe. O som seco da enxada cortava o silêncio como um tambor de guerra calma.
As galinhas ciscavam por perto, aproveitando os insetos revirados pela movimentação. Um ou outro gavião rodava lá no alto, caçando o momento certo de descer sobre algum pintinho distraído. Os bois, mais ao longe, pastavam preguiçosos, mastigando o capim com a calma que só eles têm.
A terra dali era vermelha, quente, com cheiro de vida. Cada pedaço revirado soltava um aroma profundo, que misturava barro e raiz, minhoca e seiva, sol e sombra. A vegetação ao redor murmurava sob o vento quente. Mangueiras, cajueiros e uma fileira de bananeiras marcavam a divisa com o brejo.
Aos poucos, vi as mãos dos dois homens engrossarem de barro. Os dedos firmes, calejados, riscavam a terra como artistas. E pensei: tem arte no que não se fala. No esforço mudo. No suor que escorre pela testa e pinga sem ninguém notar. No chapéu que sombreia os olhos, no pano no pescoço, na pausa rápida pra beber da moringa amarrada na cerca.
E foi aí que ouvi o tropel. Vindo da beira do pasto.
Capitão e Danada, os dois cachorros velhos da casa, vinham correndo com o focinho levantado, latindo e rodando em volta de Tião. Danada era ligeira, branca com manchas pretas, olhos atentos como os de gente. Capitão era mais velho, de pelo queimado e porte orgulhoso, o rabo erguido como bandeira de guerra.
— Tá na hora de tocar o gado, senão vão pra água, disse Tião, enxugando o rosto com o braço.
Matheus assentiu com a cabeça e bateu o pé no chão.
Os bois estavam lá no fundo do pasto, perto da grota. O calor do dia fazia eles procurarem sombra, mas já passava das quatro, e se deixasse, espalhavam-se de vez. Tião assobiou curto, e Capitão saiu na frente como quem já sabia o serviço. Danada foi pelo lado contrário, roçando os arbustos, sem fazer barulho.
Matheus correu pela lateral, batendo palma e gritando:
— Óia! Vai! Vai! Bate no curral! Só no campo tem isso.
O gado começou a se mover devagar, primeiro com desconfiança, depois com mais decisão. O sol já descia, pintando o céu com aquele alaranjado que só o campo tem. A poeira levantada pelos cascos dos bois se misturava à luz do fim do dia, criando um véu dourado que parecia mágico. Vi um bezerro tropeçar e correr atrás da mãe, vi Capitão morder de leve a perna de um boi teimoso, e Danada latir firme pra um que tentava desviar.
Tião gritou:
— Fecha a porteira, Matheus!
Matheus correu, segurando a tranca de madeira no braço. Os bois entraram de vez, resmungando, bufando, chutando barro. A cerca balançou, mas aguentou firme.
O curral cheirava a bicho, couro, capim mastigado e ferrugem. Eu, sentado na porteira adjacente, só anotei:
"Tem hora que o campo respira junto com a gente. A enxada cava a terra, os cães guiam o gado, o suor escorre. É como se tudo fosse uma grande oração."
Tião passou por mim e sorriu de canto:
— Tá escrevendo, é?
— Tô. Tô escrevendo o que vejo.
— Escreve aí que essa vida é dura, mas é limpa. Falou Tião atiçando se Pé de Cedro que saiu em disparada, uma vaca teimosa ainda faltava.
O céu já tinha nuvens grossas chegando do sul. Aquele cheiro de chuva voltou a passar. Não forte como da última vez, mas o suficiente pra molhar a poeira e acalmar os bichos.
Fechei o caderno, levantei da porteira, e senti a madeira ranger sob meus pés. O primeiro pingo caiu na aba do meu chapéu. E eu soube, mais uma vez, que estava exatamente onde precisava estar.
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