Dia 5 – Cheiro de Terra Molhada
Café Passado no Pano
O sol nasceu com gosto de recomeço. Era daqueles dias em que o céu acorda limpo, azul de doer, e o calor chega manso, só pra lembrar que a terra ainda tá viva. Acordei com o cheiro do café invadindo o quarto, vindo direto do pano de coar. Nem precisei de despertador, quem precisa, quando tem cheiro de pão de sal saindo do forno de barro?
Abri a janela e dei de cara com a manhã abrindo as asas sobre o terreiro. A cerração da madrugada já tinha se levantado, deixando o verde mais verde, a luz mais dourada. As galinhas cacarejavam agitadas, o galo ensaiava seu terceiro canto e os cachorros corriam como se fosse domingo. Tudo ali me dizia: “Levanta, que o dia quer conversa.”
Vesti a camisa puída, calcei as botas e fui direto pra cozinha. Dona Loudes já estava com o pano pendurado no ombro, revirando o feijão com colher de pau.
— Dormiu bem, homem da cidade?
— Melhor que em anos, Dona Loudes.
Ela riu com aquele jeito de quem sabe o que não diz.
Na mesa, o café recém passado fumegava. Preto e forte. Tinha pão de milho, manteiga batida na mão, queijo curado e bolo de fubá com coco ralado por cima. Era um banquete que só a simplicidade sabe montar.
Comi em silêncio, escutando a rádio tocando moda de viola e o barulho da roça despertando do lado de fora. Até que um barulho estranho cortou o ar.
— Barulho de confusão, disse a Dona Loudes, sem nem levantar os olhos do fogão.
E era mesmo.
Um berro de bode. Depois um grunhido desesperado. Depois madeira batendo. Depois pena voando.
— Lá vai o Chico de novo, ela disse, largando a colher e rindo com os olhos.
Chico era o bode mais sem juízo que já conheci. E não era de hoje. Segundo Pedro, ele já nasceu encarando. Bicho bravo, teimoso, e com um coração tão grande quanto os chifres. Só que aquele bode tinha uma implicância especial: o galinheiro.
Não sei o que se passava na cabeça dele, mas toda vez que o porco dormia debaixo da sombra do galinheiro, Chico queria tomar o lugar.
Saí correndo pra ver a confusão. Lá estavam eles: Chico, com os olhos virados e as patas dianteiras firmes no chão, encarando o porco gordo que dormia como um rei, esparramado na sombra.
— Ah, não, Chico, outra vez, não.
O bode berrou, recuou dois passos e foi com tudo. Só que o porco era pesado, molenga e malandro. Nem se mexeu. Só abriu um olho, deu um grunhido preguiçoso e virou de lado, como quem diz: “Quer sombra? Compra uma.”
O bode ficou ali, irritado. Começou a bater a cabeça nas estacas do galinheiro, levantando poeira e assustando as galinhas, que saíram voando e cacarejando como se o mundo fosse acabar.
E pra piorar, lá veio a Dona Loudes com a vassoura de piaçava na mão.
— Se eu pego esse bode. Vai dormir no mato, viu, danado!
Chico fugiu correndo, levantando barro com as patas, os olhos arregalados como se tivesse visto o demo. O porco? Nem se importou. Só ronronou deitado, como quem ganhou mais uma batalha.
Voltei rindo com lágrimas nos olhos. Era aquilo. A vida simples que a cidade não ensina. E o melhor: eu fazia parte dela de novo.
A manhã passou com cheiro de terra quente e som de enxada cavando na horta. O milho já mostrava sinal de broto, e a mandioca, depois da chuva de ontem, apontava suas folhas verdes com força.
Na varanda, depois do almoço, estendi uma rede e fiquei balançando, ouvindo a conversa dos passarinhos e as histórias da vó (a mamãe de Pedro) que nunca terminavam, porque ela inventava outra no meio da primeira.
Ela me contou da vez em que o trovão caiu no pé de jatobá e rachou o chão. Do dia que o rio engoliu o cavalo do vizinho. E da noite em que seu Bastião (o esposo) sonhou com um anjo, e no dia seguinte nasceu um bezerro branco.
— E tu, homem da cidade? Já viu anjo por lá? Ela pergunta.
— Só gente apressada e luz de celular, vó.
Ela riu de novo. E voltou pro tear. No fim da tarde, o céu começou a mudar de novo. Nuvens cinzas vieram vindo como quem quer conversar devagar. O vento soprava mais frio, e as folhas das mangueiras viravam de lado, sinal de chuva certa.
Antes que a primeira gota caísse, corri pro curral pra ajudar a prender as vacas. O cheiro da chuva vindo misturado com o esterco fresco me encheu o peito de novo. Tinha algo de santo naquele ar.
A chuva caiu fina no começo. Depois engrossou. O telhado da casa virou tambor, e as calhas cantavam a música da roça feliz.
Na rede, já de noite, escrevi:
“Hoje o dia teve sol e riso, confusão e café. Teve bode doido e porco esperto. Teve cheiro de pão e cheiro de chuva. A cidade nunca vai entender, mas aqui tudo isso faz sentido.”
E quando fechei o caderno, a avó disse do outro quarto:
— Apaga essa lamparina, Homem da cidade. Amanhã cedo o dia começa de novo.
E começa mesmo. E eu estarei aqui pra viver e contar.
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