Dia – 4 Cheiro de Terra Molhada
Dia de Chuva, Prosa e Trapalhadas
04 de julho de 2025
Acordei mais cedo hoje, mesmo com a rede me abraçando feito colo de mãe. O tempo lá fora seguia molhado, e a chuva, constante desde a madrugada, ainda riscando o telhado de telha com aquele som hipnótico, quase música de ninar. Não era chuva de trovão ou vento bravo, mas daquelas que caem de mansinho, o dia inteiro, como uma prece que a terra faz para si mesma. A neblina cobria tudo como um véu branco sobre a paisagem, e dali da varanda, os morros sumiam no fundo da névoa, como se o mundo acabasse logo ali atrás da cerca.
À minha frente, as árvores balançavam pouco, pingando em gotas pesadas. Os galos pareciam ter desistido de cantar hoje, talvez com medo de molhar o topete. Até os passarinhos estavam recolhidos, empoleirados sob beirais ou entre galhos grossos, com as penas inchadas e olhos vigilantes. O dia se anunciava tímido, envolto numa paz úmida.
Capitão, como de costume, já estava no terreiro. Parecia sério, atento, até que o bode Chico apareceu. Lá vinha ele, desajeitado, atrevido, e com aquele olhar de quem vive aprontando. E bastou um olhar torto para começar a confusão. Chico deu uma investida no rabo do Capitão, que se virou num pulo e saiu latindo pelo terreiro, rodando ao redor do bode como quem dizia “hoje não, seu sem-vergonha!”. Chico, fingindo que não era com ele, se fingia de morto e depois pulava num toco de madeira como um artista no picadeiro. E a perseguição seguiu: um escorregava na lama, o outro atolava as patas dianteiras, e eu, ainda na rede, ria como criança vendo desenho animado. A verdade é que a vida tem disso: mesmo debaixo d’água, o riso brota.
Dona Loudes já estava de pé, como sempre antes de todo mundo. O cheiro do café já chegava misturado ao de bolo de milho fresco. A mesa da manhã hoje foi um espetáculo para aquecer o corpo nesse tempo de chuva: cuscuz com nata, pão de batata-doce, banana da terra frita no mel de engenho, queijo assado na chapa do fogão de lenha e aquele café forte, escuro como noite sem lua. João apareceu depois, calçando as botas já enlameadas, e trouxe a notícia boa: a vaca que salvamos ontem estava bem. Tinha passado a noite no curral coberto, se alimentado direitinho e até já tinha dado sinal de querer caminhar. Essa notícia nos deixou com o peito cheio, salvar um bicho é como devolver um pedacinho do mundo ao lugar certo.
A manhã seguiu em ritmo calmo. Com a chuva, o trabalho pesado foi adiado. Ficamos no galpão, limpando algumas ferramentas, remendando sacos de estopa e contando causos. Tião contava uma história de quando viu dois bodes brigarem por causa de uma cabra prenhe, e jurava que um deles saiu com a perna quebrada e o outro com o chifre torto. Pedro ria com aquele riso abafado de quem já viveu tudo no campo. E eu, sentado num tamborete, só ouvia, aprendendo mais com as histórias do que com qualquer livro de cidade.
Por volta do meio-dia, a chuva engrossou de novo. A água escorria pelas laterais da casa, formava sulcos na terra, alagava pequenas passagens entre as hortas. Mas ninguém reclamava. Aqui, chuva é bênção. O milho agradece, o feijão cresce forte, e até as ervas do quintal ganham cheiro mais forte. A abóbora, aliás, já estava toda ramada, com flores amarelas abertas mesmo sob o céu cinza.
O almoço foi daqueles que aquecem até o osso: baião de dois com bastante carne seca, salada de couve rasgada à mão, farofa de feijão verde com manteiga de garrafa e, de sobremesa, doce de caju com calda escura. A mesa farta, os pratos fundos, e a conversa solta. É nessas horas que a gente percebe como a vida pode ser boa sem pressa.
À tarde, entre uma garoa e outra, fomos verificar a ponte consertada. Resistia firme. As águas já corriam com menos força, e os pássaros começavam a reaparecer, aos poucos, nos fios e cercas. Mais tarde, João me mostrou o galinheiro novo e o espaço das codornas. Essas aves pequeninas são um encanto: andam ligeiras, bicam o chão sem parar, e têm um som tão delicado que parece quase um suspiro.
O sol só deu as caras perto das quatro, e mesmo assim, tímido, como quem pede desculpas pela ausência. Mas o campo já estava limpo, lavado, e a natureza parecia satisfeita com o que recebera. Até Chico e Capitão, que haviam passado o dia todo se provocando, agora descansavam juntos debaixo do pé de goiaba, um dormindo e o outro rosnando baixinho nos sonhos.
Quando a noite caiu, o céu clareou mais um pouco. A lua, grande e redonda, apareceu entre duas nuvens, refletida nas poças d’água espalhadas pelo terreiro. O cheiro de mato úmido, de lenha queimada e café fresco preenchia o ar. Dona Loudes nos chamou para a janta: canjica salgada com charque, pão de milho e uma moringa de suco de umbu.
Sentamos todos à mesa de novo, e ali, entre uma colherada e outra, a prosa correu solta. Rimos, lembramos o esforço de ontem, celebramos a chuva de hoje, e agradecemos pela vaca salva. Eu, olhando em volta, entendi mais uma vez: o campo é escola. Ensina sem dizer. Corrige sem julgar. E nos faz aprender que até nos dias mais difíceis, há beleza, basta saber ver.
Agradeço por este dia. Pelo barro, pela chuva, pela lama nos pés e pela paz na alma. A vida no campo, ainda que cheia de trabalho, também é feita desses momentos que a cidade jamais vai entender. E amanhã, se a chuva der trégua, tem marcação de bezerro. Mas isso, ah, isso já é história para o dia 5
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