03 de julho de 2025
Não tem como escrever tudo o que acontece no campo, disso eu já sabia. Cada hora guarda um pequeno universo, e para contar com justiça o que se vive por aqui, seria preciso muito mais que tempo: seria preciso silêncio, alma atenta e um coração aberto. A verdade é que a vida rural não espera ninguém, e enquanto tento escrever, o campo segue em frente, derrama suas chuvas, encharca seus caminhos e, de vez em quando, desafia a força dos que ali vivem.
Hoje o dia amanheceu com chuva. Uma chuva mansa, dessas que parecem sussurrar nas folhas. Eram pouco mais de seis horas quando abri os olhos, ainda deitado na rede da varanda, e percebi que o mundo ao redor respirava devagar. A neblina dançava entre os troncos das árvores, como véus suspensos. O ar estava gelado e úmido, e a madeira da varanda exalava o cheiro da noite molhada. Lá fora, os galhos gotejavam, e os passarinhos, com as penas encolhidas, saltavam de galho em galho em busca de abrigo sob as palhas dos galpões ou sob os beirais da casa. O galo, coitado, deve ter perdido a hora, talvez intimidado pela chuva, porque até então, nenhum canto soara pelo terreiro.
Mas o som das panelas batendo vindo da cozinha já era anúncio certo: Dona Loudes estava de pé. O cheiro do café torrado invadia o ar úmido com força, misturado ao aroma de milho assado e pão de goma que inchava no forno de barro. A mesa, como sempre, era um convite: macaxeira cozida, bolos de milho e de puba, manteiga fresca escorrendo por cima do pão quente, queijo de coalho grelhado, cuscuz amarelinho, ovos caipiras com gema de ouro e o café preto, forte como abraço de mãe nordestina.
João, já sentado à mesa, anunciou que o dia de marcar os bezerros teria que esperar pela tarde. A chuva havia feito estrago. A ponte de madeira que cruzava o canal havia cedido com a força da enxurrada. Um pequeno canal escavado à mão e aprofundado com auxílio de máquinas tinha a missão de conduzir água da nascente até a plantação. Neste mês, crescem por aqui o milho verde de segunda safra, feijão de arranca e a abóbora menina, tudo vibrando em cores, mesmo debaixo de chuva. Agora, com a ponte caída, era preciso resolver.
Mesmo com o tempo ainda fechado, pegamos as ferramentas e partimos. O barro do caminho soltava bolhas d’água a cada pisada, e o cheiro forte de terra mexida subia como perfume do chão. A água descia dos morros em velocidade, carregando folhas, gravetos e até algumas pedras. A ponte ainda estava presa de um lado, num tronco grosso fincado na parte mais firme do terreno. O trabalho seria puxado, mas nada fora do esperado, ao menos era o que achávamos até então.
Foi o Capitão, o cachorro fiel de Tião, quem nos alertou que o problema era maior. O latido dele, adiante no mato ralo, era de desespero. Corremos. Quando alcançamos o local, vimos: uma vaca estava presa numa poça de lama, não era funda, mas o suficiente para prende-la com as patas traseiras quase toda coberta, olhos arregalados e o focinho tremendo. Devia estar ali havia horas, talvez desde o começo da chuva. O canal tinha uns três metros de largura, e um metro raso de fundura, mas a lama grudava como cola em cada movimento dela.
— Tragam as cordas! Gritou Pedro, com a voz firme.
Em segundos, Jonas e Matheus já nadavam até o outro lado, sem pensar duas vezes. Tião, o mais experiente, descia de seu cavalo Pé de Cedro, um belo exemplar da raça Mangalarga Marchador, de pelagem castanha e olhar inteligente. Com destreza, ele posicionou o cavalo próximo à margem do canal.
Jonas e Matheus, já cobertos de barro até o peito, removiam galhos e folhas tentando abrir caminho até o animal. A vaca gemia baixo, exausta. A chuva tinha deixado o terreno pesado e a água, mesmo mais calma, escorria sem parar. Pedro lançou a corda. Jonas agarrou e, com o cuidado de quem conhece os limites do campo e dos bichos, amarrou primeiro o pescoço do animal, depois as patas dianteiras e, por fim, as traseiras. As cordas se cruzavam pelo corpo da vaca como linhas de uma camisa molhada. Quando tudo estava pronto, a corda foi jogada de volta.
Pedro amarrou na sela do cavalo de Tião que já estava preparado. E então, a força do Pé de Cedro mostrou porque ele é o melhor cavalo da fazenda. A lama resistia. O animal urrava. Os homens gritaram. Capitão latia em volta como se soubesse o que estava em jogo. A chuva já não era forte, mas o vento cortava. Todos estávamos molhados, sujos, tensos. O barulho do barro se soltando do corpo do animal soou como uma respiração presa se libertando. A vaca escorregou, girou no eixo da corda, Pé de Cedro ia a frente, voltava, respirava ofegante e continuava, sempre ao comando de Tião que seguia instruções de Pedro e por fim, veio ao chão firme com um baque surdo que Tião teve que segurar as rédeas de Pé de Cedro.
Silêncio.
E então, um suspiro coletivo. Tião desmontou as amarras da cela fazendo um carinho em Pé de Cedro. Capitão pulou de alegria. A vaca, tonta, ficou deitada alguns minutos. Depois, levantou-se devagar e olhou para todos como se agradecesse. Estávamos cobertos de lama, com frio, mas sorrindo como quem acabara de salvar um pedaço do mundo. Porque era isso. Um bicho no campo é como uma vida da gente. Cada um tem seu valor.
Depois do almoço, voltamos para consertar a ponte. A chuva tinha parado. O céu, ainda nublado, já dava pistas de abertura. Martelamos, puxamos tábuas, medimos apoio. A ponte, embora provisória, ficou segura. Ainda tive tempo de visitar o espaço das codornas, ali atrás da palmeira do açude. Um canto limpo, seco, onde elas bicavam grãos com calma, enquanto cantavam aquele som que só elas sabem fazer.
À noite, antes do sono, que hoje foi merecido como nunca, aquela prosa boa na varanda voltou. Dona Loudes serviu um café quentinho, agora com um pedaço de broa de milho e risos contidos entre os goles. Lá fora, a lua despontava limpa no céu aberto, desenhando o campo em prata. Era como se ela dissesse: “Amanhã o sol virá com força.” E a gente acreditou.
Porque, sim, a vida no campo nem sempre é só harmonia. Há dias difíceis, há trabalho bruto, há urgências. Mas é justamente nessas lutas que a beleza se esconde, e quando a poeira baixa, a gente a encontra. Em cada bicho salvo, em cada tábua pregada, em cada café quente servido no fim do dia.
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