Corvo do Silêncio
"Onde o mundo grita, o Corvo do Silêncio escreve, e no som das palavras, a alma desperta."
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Textos

Dia 02 – Cheiro de Terra Molhada

Melhor noite de sono em anos sem o barulho da cidade

 

02 de julho de 1025

 

Na cidade, o sono é uma necessidade biológica que vira luxo. Dormimos porque o corpo pede, mas raramente descansamos de verdade. Há sempre um ruído interrompendo, um carro passando, um alarme tocando antes do tempo certo. No campo, o sono tem outro sabor, outro tempo. Não sei explicar bem, talvez nem precise, mas dormir aqui é como se o corpo e a alma se alinhassem com a natureza. Não há pressa. Nem ruído. Nem interrupção. Aqui, o sono respeita o silêncio e o silêncio respeita o sono. Hoje nem mesmo o galo cantou para me acordar. Talvez ele tenha entendido que eu precisava dessa pausa. Talvez até ele tenha achado que, dessa vez, sair do ônibus na entrada da fazenda tenha sido uma boa escolha.

 

Quando abri os olhos, eram exatamente 8h34. O dia amanhecia com um frio gostoso, aquele que arrepia só a ponta do nariz, enquanto o resto do corpo ainda se enrola na rede. O sol ainda não tocava a terra, escondido atrás das copas altas das mangueiras e dos eucaliptos antigos. Uma brisa leve entrava pela janela sem vidro, trazendo o cheiro de terra molhada, herança da chuva que caiu firme durante a madrugada. Pelas poças que ainda refletiam o céu cinza, mamãe pata nadava com seus filhotinhos alinhados feito barquinhos, cada um remando com seus pezinhos amarelos. As folhas ainda pingavam. O chão cheirava barro e raiz. As galinhas, cheias de coragem e ciscando com pressa, tinham que saltar por cima do bode Chico, que havia decidido dormir bem na entrada do celeiro, deitado feito um vigia rústico.

 

Permanecer ali por mais tempo seria fácil. Não havia ninguém para me apressar, ninguém batendo porta ou buzinando. Ficaria por séculos, se não fosse a movimentação de dois moradores de quatro patas que vieram me lembrar que no campo, cedo é sinônimo de vida. Zangado, um vira-lata marrom de orelhas grandes e um olho manchado, me olhava parado, como quem diz: “Aqui a gente se levanta com o sol, rapaz.” Já Danada, a fêmea, era de outra natureza. Com os olhos mel e o pelo branco rajado, se aproximou com carinho e deitou as duas patas na rede, pedindo um afago. O jeito dela era calmo, como quem já sabe que a vida tem seu ritmo e não vale a pena apressar ninguém. Estava prenhe, com a barriga pesada balançando a cada passo, talvez isso a deixasse ainda mais sensível ao meu cansaço.

 

Depois de espantar a preguiça, lavei o rosto na bacia de alumínio com a água fria da cisterna, que queimava os olhos e despertava até pensamento antigo. E foi ali, com os olhos ainda ardendo, que o cheiro de café fresco invadiu meus sentidos, vindo da varanda dos fundos. Um cheiro forte, de coador de pano e lenha. Fui seguindo esse rastro como se fosse uma trilha sagrada, e encontrei a mesa de madeira, gasta nos cantos e coberta com uma toalha de crochê feita à mão. Havia pão de milho, bolo de fubá, queijo de coalho cortado em tiras, manteiga batida na fazenda, ovos mexidos e um bule de ferro que chiava sobre o fogão de lenha. A brisa da manhã misturava o perfume do mato com o cheiro da comida. Era simples, era puro. Era tudo.

 

— Bom dia, disse Dona Loudes com aquele sorriso que só quem tem raiz no chão sabe dar.

Dona Loudes chegou ao Brasil ainda jovem, com dezessete anos, vinda do interior da Itália. Com o tempo, o sotaque dos pais foi virando música de fundo, e hoje ela é mais nordestina que farinha no pilão. A pele morena pelo sol, os olhos claros herdados de ancestrais e um modo de falar que mistura o “ragazzo” com o “cabrunco”, tudo isso faz dela uma figura única. Na cozinha, é dona absoluta. Os movimentos são leves, mas a autoridade é firme. Com ela, o café da manhã é quase um ritual, não se come apenas, se agradece.

 

Depois de um dedo de prosa com ela, fui conhecer o terreno. O céu já começava a abrir e um azul discreto surgia entre as nuvens como quem espia. Mal dei dois passos no terreiro e senti uma batida leve no quadril: era o bode Chico, que viera me dar as boas-vindas. Por pouco não acerta o bumbum com sua cabeçada amistosa. Ri. Acho que ali, até os animais sabiam receber um forasteiro com graça.

 

À tarde, fui até o plantio de melancias. Era um campo extenso, forrado de folhas verdes que se estendiam como um tapete vivo, salpicado de frutos arredondados e brilhantes. As ramas serpenteavam pelo solo úmido, com flores amarelas que ainda insistiam em nascer mesmo fora de época. Um senhor que cuidava do local, chapéu de palha e mãos calejadas, explicou que aquele tipo de melancia era mais doce por crescer em terra de barro escuro, rica em matéria orgânica e banhada por córrego natural. Peguei uma na mão, ainda pequena, e senti o frescor dela, quase como um coração batendo.

 

Na volta, o almoço já estava servido. A mesa era a mesma da manhã, só que agora mais cheia. Havia arroz branco soltinho, feijão macassa (acho que é esse o nome) temperado com coentro fresco, carne de sol acebolada, farofa de ovo, salada de alface crespa e tomate colhido na hora. No centro, uma jarra de suco de caju tirado do pé e, no canto da mesa, um doce de leite ainda morno. Sentar ali era como voltar no tempo. O silêncio era cortado apenas pelo barulho dos talheres e por um ou outro "vixi" de satisfação. Comida de verdade tem esse poder: ela nos devolve a infância, mesmo quando a infância não foi no campo.

 

Ah, meus amigos, contar o que se passa num único dia de roça exigiria uma eternidade de palavras. Cada minuto guarda um universo de detalhes, cada som, um segredo da terra. Por isso, decidi que, nos próximos dias, vou escrever só o essencial, mas sempre com o coração.

 

E agora, escrevo com o olhar pousado na paisagem do fim da tarde. O céu se pinta em tons de rosa queimado, laranja denso e um azul-violeta. As nuvens parecem algodão doce rasgado pelo vento. O sol se deita por trás do morro, lento e imponente, como quem se despede com dignidade. Um grupo de andorinhas passa rasante, traçando coreografias no ar. As folhas farfalham, os grilos ensaiam seu canto noturno, e o cheiro da terra molhada ainda sobe do chão. Sentado na cadeira de palha, percebo: não é o tempo que desacelera aqui, somos nós que, finalmente, conseguimos acompanhar o ritmo do mundo.

 

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Corvo do Silêncio
Enviado por Corvo do Silêncio em 31/07/2025
Alterado em 03/08/2025
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