Corvo do Silêncio
"Onde o mundo grita, o Corvo do Silêncio escreve, e no som das palavras, a alma desperta."
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Textos

CHEIRO DA TERRA MOLHADA

DIA - 1

 

Primeira chuva depois da seca. A terra respira.

Uma introdução ao lugar, à casa, à família e ao cheiro que dá nome ao conto que lhes trarei.

 

01 de Julho de 2025

 

Nunca pensei que um cheiro fosse capaz de me desmontar por dentro. (Explicarei mais a frente esta expressão desmontar por dentro) Mas ali estava eu, com os pés ainda dentro do ônibus velho, quando o ar da roça invadiu meus pulmões pela primeira vez em tantos anos. Sim, amigos, a última vez estive nesse vasto universo rural foi quando tinha quinze anos, meu avô ainda vivia e contava suas histórias. Bom, não era só o cheiro da terra molhada, era o cheiro da infância, de correr na frente de um bode, “O Zequinha”, mas aqui também tem bodes, já me contaram que um tal de Chico gosta de uma confusão. Da memória, do meu avô e de minha falecida mãe e do meu pai, ambos estão no céu junto a Deus. Do tempo que não volta e naquela época parecia não passar, se passava, confesso que eu não via. Era como se o chão dissesse: “Você voltou, menino.” Claro, o menino ficou nas memorias, hoje, o homem pensava em voltar no mesmo ônibus para não reviver essas memórias depois de trinta e cinco anos.

 

O ônibus rangeria suas últimas engrenagens ao frear no areal vermelho que marcava a entrada da fazenda de um amigo dos tempos da antiga empresa aérea Varing (quem não lembra?). O motorista, um sujeito calado de fala arrastada, só me olhou pelo espelho e resmungou:

 

— Chegô, moço.

 

Amigos abro um espaço para dizer que tentarei o máximo escrever como o povo daqui fala, eu perdi meu sotaque Nordestino, mas eles não, e não se importam de falar “ôcê” ao invés de “você” mais pensa numa bestaiada de povo feliz sô.

 

Peguei minha mochila puída, (algo que é velho, quase podre, rasgando, mas ainda servi, eu tava me sentindo puído em voltar depois de tanto tempo) desci o degrau alto e senti o mundo mudar. Atrás de mim, a fumaça do motor se misturava com o cheiro de chuva recém caída, que fazia o chão soltar aquele vapor doce e ancestral. À minha frente, a estradinha de barro já mostrava poças fundas, e ao longe, o telhado de barro da casa velha brilhava como ouro suado no entardecer. A chuva tinha parado fazia uns minutos, e o céu ainda pingava nas folhas das mangueiras e no capim alto. Tudo parecia quieto, mas vivo. Como se o mundo tivesse prendido a respiração.

 

A cidade tinha me tragado, me moldado, me colocado dentro de um terno, (sou formado em teologia também e como evangélico era missionário consagrado pelo Ministério Nação em Cristo) de um relógio pontual e de um celular que vibrava mais do que meu coração. Mas eu tinha férias pra tirar e a anos esse amigo me convidava pra passar uns dias com ele e família na roça deles. Pedi minhas férias e liguei avisando que ia. Do outro lado da linha uma risada. Pelo menos eu ia está entre famílias ainda era o mesmo brincalhão de sempre. No fundo, o corpo sabia o que a alma se recusava a admitir: eu precisava voltar.

 

A casa ainda era branca pintada de cal, janelas azuis descascadas, com aquele alpendre onde cabia o mundo inteiro nas tardes de prosa. Ao lado, o paiol. Mais atrás, o curral, o galinheiro, o velho chiqueiro e apenas um bode deitado na porta. — Ele pensa que é galinha. Falou sorrindo o brincalhão de sempre. O cheiro de esterco, lenha molhada e mato cortado me atingiu como um abraço que ganhava do meu avô quando levava uma manga rosa pra ele. E por falar nela…

 

— Mas olha só quem resolveu aparecer, meu Deus do céu! — disse a voz que eu jamais esqueceria, mesmo com a memória falha da correria urbana.

 

Era Dona Lourdes. Vocês vão gostar dela. Tinha envelhecido, claro. O cabelo agora era uma mistura de negro prata. Mas os olhos? Ah, os olhos eram os mesmos: firmes, doces, com a sabedoria de quem plantou o tempo e colheu histórias.

 

— Tava achando que tu nem lembrava mais de nós, homem da cidade! — E ela nunca perdeu o humor.

 

Sorri. Abracei-a como quem segura a infância no colo. Por um instante de tempo me vi abraçando minha mãe. Quando novas, ninguém ganhava elas nas rodas de prosa e café.

 

— Ainda tem cheiro de gente boa, murmurou.

 

Naquela noite, depois do banho de bacia num banheiro improvisado próximo ao curral. Era hora da comida quente feita no fogão a lenha, arroz soltinho, frango caipira, pirão e salada tirada da horta. Teve aquele dedin de prosa, mas o dia pra eles começa cedo. Sentei na varanda com um cobertor no colo e um caderno antigo que achei na gaveta do quarto antes de sair.

 

A chuva voltava a cair, mansa. As goteiras cantavam nas telhas. E foi ali que decidi: durante esses trinta e um dia, eu escreveria tudo, ou tentaria. Cada cheiro, cada bicho, cada susto e cada manhã. Porque aqui, no campo, o tempo não corre, ele caminha com passos de boi cansado, mas firme.

 

E essa terra molhada? Ah, essa terra tem segredos que só quem anda descalço consegue ouvir.

 

Já ia esquecendo. Depois do jantar, foi pra varanda. A cadeira de madeira rangia sob meu peso e memória. Havia um silêncio que só o campo conhece, ou que vive nesse mundo, não era ausência de som, os grilos faziam sua cantoria como em todas as noites. Mas uma presença de paz. Os grilos davam seu concerto, as rãs gritavam nos brejos, e vez ou outra um galho estalava, talvez com o vento, talvez com algum bicho que passava. A chuva tinha parado, mas o telhado ainda pingava ritmado, como se o tempo escorresse de leve pelos beirais.

 

O lampião pendurado no teto lançava sombras nas tábuas do chão. Dona Lordes, com o tricô no colo, me olhava de rabo de olho. E eu pensando está só na varanda. Mistérios do campo, você nunca está só.

 

— Vai ser bom pra ti ficar aqui uns tempos. Ela falou com tana ternura. Eu apenas concordei.

 

Aquelas palavras não saíram da minha cabeça até o sono me pegar pela mão e me levar, devagar, até a rede armada no outro lado da varanda, afinal no campo agente dorme no tempo. O cheiro de madeira velha, o som das gotas caindo, de lençol guardado em baú me rodeava como um cobertor invisível. Fechei os olhos e, pela primeira vez em muito tempo, dormi antes do celular. E sem barulho de sirene, moto ou vizinho gritando no apartamento ou musica sem futuro a alturas insuportáveis.

 

01 – Capítulo 02

 

Corvo do Silêncio
Enviado por Corvo do Silêncio em 30/07/2025
Alterado em 03/08/2025
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