Capítulo 10
A Sombra da Colina
O que não se vê a olho nu...
O táxi velho parou no início da estrada de paralelepípedos que levava a Ellenshade. O motorista, um homem de meia-idade com barba ralam e cigarro pendendo do canto da boca, virou-se para trás e lançou um olhar estranho a Andressa, como quem encara uma pessoa que decidiu retornar a um lugar pra onde ninguém gostaria de voltar.
— Dona... a senhora não bate bem das bolas vindo pra esse lugar de filme de terror, viu? Disse, fazendo o sinal da cruz e soltando uma risada nervosa. Em seguida, engatou a marcha, deu meia-volta e sumiu estrada afora, desaparecendo no emaranhado de árvores retorcidas que emolduravam o caminho.
Andressa ajustou a alça da bolsa no ombro e olhou em direção à vila. A bruma parecia mais espessa que antes, e o vento tinha um sussurro que lembrava vozes distantes. Cada passo seu fazia ranger o chão de cascalho, como se a terra reclamasse sua volta.
Ao empurrar a porta da pousada, um sininho tilintou no alto, e a figura de dona Matilde surgiu por trás do balcão.
— Então você retornou a Ellenshade, disse com um sorriso quase maternal, enquanto caminhava até ela e a puxava para um abraço quente e inesperado.
— Sim. Não consegui ficar longe. Respondeu Andressa, tentando manter a voz firme.
Elas sentaram-se no salão da pousada. As cortinas estavam fechadas, como sempre, e a única luz vinha das velas dispostas em suportes de ferro nas paredes. O cheiro de canela e madeira velha pairava no ar.
Depois de algumas trocas de palavras sobre a viagem e o clima estranho da cidade, Andressa colocou a bolsa sobre a mesa e puxou de dentro dela a pasta bege com o carimbo do IML. Seus olhos encararam os de Matilde, agora mais atentos.
— O que significa esse número? Perguntou Andressa, abrindo a pasta para mostrar a última folha.
Dona Matilde inclinou a cabeça levemente para o lado, como se precisasse refletir antes de responder. Depois sorriu, num tom de humor típico de quem prefere desviar o foco.
— Ora, minha filha... é só o número do recibo de pagamento dos dias que você ficou aqui. Deve ser algum erro de coincidência... Disse, embora sua voz carregasse uma leve trêmula que denunciava dúvida.
— Veja! Insistiu Andressa, colocando ao lado o recibo da primeira estadia. O mesmo número. 333. E agora veja isso..., disse enquanto abria a pasta até a última página. O número aparece bem acima do que parece ser um morcego com as asas abertas, e abaixo há um símbolo... aqui. Olha isso, Matilde.
O símbolo era uma espiral triangular entrelaçada com três pontos centrais em cada extremidade, como se fosse uma variação antiga do triskelion, algo que remetia à eternidade e ao ciclo da vida, morte e renascimento.
Dona Matilde deixou o corpo cair devagar na cadeira, respirou fundo e olhou para Andressa com os olhos ligeiramente marejados.
— Porque você voltou, Andressa?
— Por causa disso. Respondeu, pegando o caderno em branco que Lázaro lhe dera. Ele prometeu me contar tudo..., mas me entregou só isso. Ou seja, nada.
Dona Matilde ficou séria. O riso desapareceu.
— Não, minha filha. Você só está vendo o que quer ver... e não o que deve ser visto. Disse de maneira firme.
Andressa engoliu seco. Lembrou-se das palavras que ouvira da própria Matilde em sua visita anterior:
“Você tem que contar o que ninguém vê. O que ninguém quer ver.”
Dona Matilde se levantou.
— Me dê esse caderno. Pediu, enquanto empurrava objetos para o canto da mesa. Andressa entregou sem saber o que esperar.
Matilde colocou o caderno aberto, com a folha onde o número aparecia, sob uma vela que já estava quase se apagando. O calor da chama lambeu lentamente o papel.
Por alguns segundos, nada aconteceu. Depois, como se o calor fosse uma chave, uma mensagem começou a surgir, escrita com tinta invisível, revelando-se lentamente em traços escuros sob a ação da vela.
Andressa arregalou os olhos. Recuou um pouco, sem acreditar no que via. Dona Matilde, ao seu lado, apenas observava em silêncio, como se já soubesse exatamente o que iria aparecer ali.
A vela apagou-se no instante em que a mensagem estava completamente visível.
Andressa afastou-se da mesa, levando as mãos à boca. Estava sem palavras. Não sabia se ria, se gritava, ou se deveria sair correndo da vila de uma vez por todas.
Antes que pudesse reagir, uma rajada de vento frio soprou contra a vidraça da janela, fazendo com que a cortina balançasse lentamente.
Do outro lado da colina, além do campo de lavandas silvestres, havia uma casa. Não estava ali na última vez que Andressa visitara o local. Ou, talvez, estivesse..., mas encoberta por névoas,
esquecimentos e filtros da percepção.
Era uma construção antiga, gótica, com colunas de pedra esculpidas com figuras estranhas, híbridos entre humanos e morcegos. A madeira escurecida das janelas estava rachada, e o telhado em ângulo agudo parecia fatiar o céu. No portão de ferro forjado, havia uma arte detalhada: um morcego de asas abertas, os olhos cravejados com pedras vermelhas que pareciam acesas sob a luz do luar.
As árvores ao redor estavam todas inclinadas para longe da casa, como se algo as repelisse. Nenhum pássaro cantava naquele pedaço de colina. Nem mesmo o vento ousava cortar o silêncio que a envolvia.
Andressa apertou o caderno contra o peito. A verdade estava se desenhando diante dela. E quanto mais se aproximava dela, mais tudo em Ellenshade parecia despertar de um sono enfeitiçado.
Continua..