Capítulo 9
Sob a Penúltima Página
Algumas mortes não se encerram com um atestado...
Dois dias antes de retornar a Ellenshade, Andressa decidiu usar uma carta guardada na manga, um favor antigo, de um tempo em que os aplausos não haviam se calado, em que os cafés ainda lhe pediam autógrafos, e não apenas a conta.
— Há quanto tempo, doutor Horácio? Disse, com aquele sorriso que sabia misturar charme e estratégia. Preciso muito da sua colaboração para o meu novo projeto.
O homem de jaleco branco olhou por cima dos óculos e sorriu com uma expressão genuinamente surpresa.
— Que bom vê-la novamente, Andressa... Senti falta das suas histórias sombrias. Já imaginava que esse dia viria. Então... no que posso ajudar, hein? A pergunta não vinha por curiosidade, e sim como um sinal de que o favor estava, enfim, sendo cobrado.
— Você ainda cuida dos registros do IML, não é? Aquela parte menos burocrática, mais... profunda? Perguntou com leveza, como se falasse de algo trivial.
Horácio assentiu, apontando com a cabeça para o corredor à esquerda.
— Acesso completo. Mas por quê? —
Ela respirou fundo, firme.
— Preciso do relatório de uma mulher que morreu há exatos cinco anos. Quero saber a causa da morte. Oficial, extraoficial, o que puder me dizer.
— Estamos falando de quem mesmo?
— Aurora. Aurora Delmont. O nome saiu como uma confissão sussurrada.
— Ah, claro. Aurora... sim..., sua voz esmaeceu no corredor. — Venha comigo.
Atravessaram dois corredores frios e longos. As paredes eram de um verde esmaecido, cortado por molduras de fórmica antiga. Um cheiro misto de éter, papel velho e café frio permeava o lugar. O necrotério era silencioso, como se a morte também exigisse respeito aos seus arquivos.
— Aqui é o setor de registros confidenciais. Disse Horácio, parando diante de uma porta metálica com um letreiro quase ilegível. Eu mesmo organizo por ordem cronológica e por causa principal, quando possível.
Ele percorreu com os olhos uma prateleira alta e empoeirada, como quem buscava um livro raro em uma biblioteca antiga.
— Aurora... Aurora..., repetia, quase como um mantra. Até que parou e apontou para o alto. Terceira prateleira, segunda gaveta.
Puxou com cuidado. De dentro, uma pasta bege, marcada com caneta azul: Delmont, Aurora – 333/IML.
— Você não tem muito tempo em sua pesquisa, esse setor é silencioso, mas cheio de olhos invisíveis. Disse ele, com um sorriso enviesado, antes de se afastar, deixando-a sozinha.
Andressa se aproximou da mesa central, iluminada por uma luminária fluorescente. Com mãos firmes, abriu a pasta na penúltima página, onde estavam os detalhes da necropsia e os anexos adicionais.
Lá estava escrito, em letras claras: Causa da morte: indeterminada. Nenhum trauma visível. Sem sinais de asfixia, envenenamento ou insuficiência cardíaca.
Mas abaixo, em um anexo preso com um clipe enferrujado, havia uma folha dobrada com uma anotação manuscrita: Padrão similar a outras duas mortes da região datadas de 1887 e 1933. Observado o mesmo número simbólico junto ao corpo: 333.
— Não pode ser..., murmurou Andressa, recuando na cadeira. O número... mais uma vez.
Longe dali, na vila, Lázaro andava no jardim. As flores de lavanda balançavam com o vento leve e frio. Desde a última visita de Andressa, ele não era mais o mesmo. Sua introspecção ganhara camadas de inquietude. A casa que antes era apenas abrigo, agora parecia emoldurar um tempo suspenso.
Levantou-se de súbito. O silêncio do jardim pareceu sussurrar o retorno dela. Subiu as escadas, foi até o retrato de Aurora. Atrás do quadro, havia um compartimento secreto, um cofre embutido na parede.
Girou a combinação. Dentro, repousava outro caderno, idêntico ao que dera a Andressa. Couro preto, costura antiga, sem marcações externas. Pegou-o com reverência, como quem retira um objeto sagrado de um altar. Colocou-o sobre a mesma mesa onde, dias antes, ela estivera sentada.
Sentou-se, os olhos fixos no vazio. O escorpião em seu braço latejava como uma ferida viva. O número, porém, sumira. A pele estava limpa, como se jamais tivesse havido qualquer inscrição. Ainda assim, ele sabia. Aquilo era o prelúdio de algo.
Na cidade, Horácio atravessou a calçada e subiu ao segundo andar do edifício onde ficava o escritório de Andressa. Entregou um envelope selado à secretária.
— Este aqui é pessoal. Apenas a senhorita Martins pode abrir. Disse em tom grave.
A secretária, acostumada a ver de tudo nas entregas de Andressa, apenas assentiu e guardou o envelope na gaveta inferior.
O sol começava a se esconder por trás dos prédios, tingindo o céu com um tom ferrugem. Andressa, em sua volta à vila, sentia-se estranhamente calma. Como se aquela investigação, antes apenas uma ideia literária, agora fosse parte de um destino que ela mal começava a compreender.
Continua...