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Capítulo 8

O Retorno e o Número Velado

Onde tudo começa a fazer sentido... ou não

 

Dez dias se passaram desde que Andressa deixou a vila de Ellenshade, mas para ela foi como se tivessem sido apenas minutos. As imagens da trilha transformada, do túmulo de Aurora florescendo, das borboletas cortando o céu cinza, não saíam de sua mente. Como poderia ignorar o que havia visto com os próprios olhos? Como explicar aquele número repetido, como uma assinatura do invisível?

O fracasso do último livro ainda doía, mas agora era uma dor que empurrava, não que paralisava. E Lázaro, com sua figura enigmática, a casa mergulhada em sombras, a voz grave e contida, havia entregado a ela um caderno em branco. Um blefe? Um teste? Não sabia dizer. Só sabia que não podia deixar aquilo para trás.

A vila, que deveria ser apenas cenário para uma história sombria, agora a habitava.

E naquela manhã ela não foi ao café de Dona Celina. Com a bolsa firme no ombro, onde guardava o caderno e o recibo, foi direto à sede da Editora Luminária. Um prédio modesto, envidraçado, na parte menos movimentada da cidade. O letreiro era novo, mas o carpete velho denunciava os anos de luta por reconhecimento.

Mesmo dez dias depois, a vila ainda era como a havia deixado: mergulhada numa penumbra quase perpétua, como se o sol se recusasse a brilhar por completo. A névoa baixava mesmo ao meio-dia. As janelas das casas estavam sempre fechadas. As poucas crianças que vira estavam dentro de casa, como se a rua fosse perigosa. Mas Matilde lhe dissera que nem sempre fora assim.

Antes... Ellenshad era viva. O jardim central florescia, regado por Aurora e por outras mulheres que cuidavam das plantas como extensão da alma. As crianças corriam, brincavam de roda, soltavam pipas, pintavam as pedras do chafariz. As tardes eram douradas. Agora, eram de chumbo.

No casarão, Lázaro estava de pé, diante do quadro de Aurora. Um retrato a óleo, em tons sépia, onde ela sorria de lado, segurando lavandas no colo. Desde que Andressa deixara a casa, algo nele havia mudado. Não sabia o que era. Sentia como se sua alma, antes estagnada, estivesse inquieta.

Fazia cinco anos que encontrara Aurora morta. A lembrança o golpeava como navalha. Voltava da vila, com pães e velas, quando percebeu a porta entreaberta. Chamou por ela. Nada. A casa estava silenciosa, e só o som de uma janela batendo fazia companhia à angústia crescente. No quarto, Aurora estava caída no chão, olhos abertos, fixos no teto, o rosto sereno. Não havia sangue. Nem sinal de luta. Parecia apenas... partida.

Os médicos disseram que o coração falhara. Mas Lázaro sabia que havia algo mais. Algo invisível. Algo que a arrancara do mundo, sem deixar marcas.

No caminho do túmulo, por cinco anos, nenhuma flor brotou. E agora, havia lavandas. E as borboletas. Ele olhou para o braço esquerdo. No esporão do escorpião tatuado, um número agora se destacava em vermelho suave: 333. Não era tinta. Era como se a pele tivesse desenhado por conta própria.

De volta à editora, Jonas Cerqueira a aguardava.

— Senhorita Andressa Martins, disse ele, com o mesmo tom confiante. — Desejo-lhe sorte. Tenho certeza de que fará o maior sucesso da sua carreira.

Ela sorriu, meio forçada, mas firme.

— Eu preciso desse sucesso, Jonas. Mais do que nunca.

Nos dez dias que se seguiram à sua volta da vila, ela pesquisou obsessivamente. Vasculhou fóruns, blogs, arquivos de jornais, relatórios policiais antigos. Falou com bibliotecários, com velhos moradores da cidade, tentou contato com a própria Dona Matilde por telefone, sem sucesso. Nada parecia explicar Aurora. Nada ligava o nome dela a qualquer registro.

Até que, movida por um instinto que nem sabia ter, ela digitou “333” – seitas, ocultismo, espiritualidade, morte e renascimento” no buscador.

Os resultados foram assustadoramente numerosos.

Sites falavam do número como um elo entre mundos, uma cifra usada por ordens antigas para identificar o ponto de transição entre o plano físico e o espiritual. Em algumas doutrinas gnósticas, 333 era o símbolo do despertar da alma aprisionada. Em correntes ocultistas modernas, era associado ao momento de revelação pessoal.

Outros afirmavam que 333 era um sinal de presença espiritual forte, frequentemente usada por médiuns para indicar a proximidade de entidades ou guias. Alguns diziam que era o número dos que viam o que os outros recusavam enxergar.

Ela anotou tudo.

Mas algo ainda a inquietava mais: a grafia idêntica no recibo da pousada e no caderno em branco. Aquela caligrafia não era humana. Era simbólica. Como se desenhada por algo além do tempo.

Ela decidiu: voltaria à vila.

Na manhã do décimo primeiro dia, chegou a Ellenshade com o coração batendo acelerado. O táxi parou na entrada da vila, como da outra vez. A neblina era a mesma. A colina, imponente. A pousada de Dona Matilde, intacta.

Mas algo a fez congelar.

Havia crianças na rua.

Três meninas brincavam com pedaços de pano colorido, rindo baixinho. Um menino passava correndo com um carrinho de madeira. E dentro da pousada, ela viu outra criança pela janela, sentada, com um livro no colo.

Ela desceu do carro sem conseguir tirar os olhos da cena. Aquilo era impossível. Na primeira vez que esteve ali, a vila parecia um cenário desabitado. Um quadro de silêncio e morte. Agora, algo havia se aberto.

Será que era o início de algo maior?

Ou o preço por tocar o que estava enterrado ainda nem havia sido cobrado?

Continua...

A Sales
Enviado por A Sales em 02/07/2025
Alterado em 02/07/2025
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