O Número e o Chamado
Quando os sinais insistem em permanecer
De volta à cidade, o apartamento de Andressa parecia mais abafado do que ela lembrava. As paredes repletas de recortes e anotações de seus projetos anteriores agora pareciam desbotadas, como se não pertencessem mais à mesma história. Sentou-se à escrivaninha, o olhar perdido através da janela de vidro que dava para a rua abaixo.
As pessoas caminhavam apressadas. A vida fluía como sempre, carros, buzinas, vozes, o ritmo conhecido de uma cidade que não se importava com o que se deixa para trás. Mas dentro dela, tudo estava suspenso. Aquela imagem não saía de sua mente: a trilha florindo no retorno do túmulo de Aurora, como se a terra dissesse “ela esteve aqui”. E depois, o silêncio na soleira da casa. A ruptura da magia. Como se algo só vivesse enquanto estivesse além do mundo dos vivos.
O jardim que Dona Matilde lhe mostrou também não saía de sua lembrança. Um lugar de riso, agora seco. Um lugar de memórias que ainda sussurravam pelos arbustos mortos. Mas havia algo comum em todas essas lembranças, “a mesma planta”.
Lavanda.
Era ela quem florescia no túmulo de Aurora. Era ela quem brotava no meio da morte. A única flor viva. A única insistente.
Andressa balançou a cabeça, tentando afastar o devaneio. Pegou o caderno com certa agressividade. Precisava de respostas, precisava escrever. Quando abriu a primeira página, só havia branco. Folhas limpas. Nenhuma anotação. Nenhuma linha.
— Ele me enganou..., murmurou. — Aqui não há nada escrito.
Frustrada, jogou o caderno sobre a mesa. Ele caiu aberto, com a última folha exposta, virada como se algo empurrasse. No canto inferior da página, em uma caligrafia que ela reconheceria em qualquer lugar, estava escrito: “333”.
Ela arregalou os olhos. Sua respiração acelerou. Com mãos trêmulas, puxou a bolsa, revirou até encontrar o recibo da pousada. Ali estava: “R\$ 333,00”. E a caligrafia era... idêntica. A mesma curva no número três. A mesma inclinação. A mesma leveza na finalização.
— Não é possível..., murmurou, sentando-se de novo, agora com o corpo curvado sobre os papéis. A coincidência era absurda demais para ser ignorada. Tudo o que antes parecia folclore agora se esgueirava em sua realidade como algo maior, oculto. Um enigma que se revelava por símbolos e não por palavras.
Do outro lado da rua, viu o letreiro do café de Dona Celina aceso. Um local pequeno, mas acolhedor, com cheiro de bolo de fubá e café passado na hora. Andressa suspirou.
— Preciso de um café...
Guardou o recibo e o caderno dentro da bolsa. Já estava na porta quando o telefone tocou.
Trimmm, trimmm, trimmm...
Ela congelou. A última vez que aquele som preencheu o ambiente foi no dia em que seu último livro fracassou e seu agente rompeu contrato. Um trauma. Um símbolo de más notícias.
Mas sua natureza leonina falou mais alto. Orgulho, coragem, presença. Ela voltou e atendeu.
— Alô? — disse, firme, embora uma nota de hesitação estivesse ali.
— Andressa Martins? — A voz era masculina, pausada, segura. Grave, mas cordial.
— Sim, ela mesma.
— Aqui é Jonas Cerqueira, editor-chefe da “Luminária Editorial”. Talvez não se lembre, mas cruzamos brevemente na Bienal de 2019. Soube que esteve na vila de Ellenshade recentemente...
Andressa quase soltou uma risada. A “Luminária”? Ela sempre considerou aquela editora fraca, pouco ambiciosa. Mas havia algo na entonação do homem, na maneira como falava seu nome, que a fez ouvir.
— Estive sim. E como exatamente soube disso?
— Pequenos mundos, Andressa. Uma colega jornalista estava na vila visitando parentes. Comentou com um conhecido, e a história chegou até mim. Fez uma pausa. — Quero ser direto. Você ainda está escrevendo?
— Depende do que entende por isso. Respondeu.
— Eu e minha equipe gostaríamos de, se você quiser, publicar seu próximo livro conosco.
Acreditamos que há algo forte aí. Algo que ninguém mais tem coragem de explorar. Queremos estar com você nessa.
Ela ficou em silêncio por um momento. Olhou para o caderno fechado dentro da bolsa. Aquele número ainda vibrava dentro de si. 333. O símbolo. O chamado.
— Eu... vou pensar, respondeu por fim. — Mas agradeço o contato.
Estaremos esperando. — E desligou.
...
Enquanto a cidade seguia seu ritmo, a vila Ellenshade, permanecia envolta no mesmo tempo suspenso de sempre. A névoa da manhã rastejava pelas colinas como véu de viúva.
Dona Matilde, com uma cesta de palha nos braços, caminhava em direção ao velho casarão de Lázaro. Dentro dela, alimentos, roupas limpas, um frasco com ervas secas. Parou diante da porta de madeira, com os olhos marejados.
Colocou a cesta devagar no chão, como quem deposita oferenda diante de um altar. Observou a fachada gasta. As janelas fechadas. Mas sentia que havia alguém ali dentro. Sempre havia.
Olhou demoradamente para aquela casa. Ela não era só madeira, pedra e solidão. Era lar de histórias que o tempo havia escolhido esquecer. Ou esconder.
Quando se virou para partir, ouviu a voz que não ouvia há muito tempo. Vinda de cima, de uma das janelas abertas.
— Talvez esteja perto o tempo de todos saberem a verdade.
A voz era de Lázaro. Baixa, rouca, profunda. Uma voz que carregava poeira de décadas e memórias caladas.
Matilde parou. Não se virou de imediato. Mas sorriu.
— Talvez esteja, respondeu, olhando para trás por sobre o ombro.
E continuou seu caminho pela trilha de pedras.
No interior do casarão, Lázaro permanecia em silêncio. No jardim dos fundos, o lugar preferido de Aurora, ele caminhava entre o musgo e as trepadeiras. As mãos para trás. Os olhos em cada canto.
As três borboletas surgiram novamente.
A Morpho azul, a Vulcana e a Pieris.
Voaram diante de seu rosto. Ele não piscou. Aquelas eram as mesmas de sempre. E ali estavam, como sentinelas de um passado que começava, pouco a pouco, a se desprender da escuridão.
Continua....