× Capa Meu Diário Textos Áudios E-books Fotos Perfil Livros à Venda Livro de Visitas Contato

Cançoes & Poesias
Onde Melodias Encontram Versos e a Arte em Harmonia Flui
Textos

 

Capítulo 5

Quando as Flores Caminham com os Mortos

A estrada entre o que se crê e o que se vê

 

  O broto de lavanda ao lado do túmulo de Aurora permaneceu na mente de Andressa como um tilintar de sino antigo continuo. Não era apenas uma planta teimosa nascida ao acaso, ela sabia disso. Era resistência. Era um símbolo. Era a beleza surgindo onde só havia dor. Ela não disse nada enquanto desciam a colina. O silêncio de Lázaro, tão profundo quanto a própria terra, a acompanhava como uma sombra fiel.

 

  Mas então, quando alcançaram a metade do caminho de volta à casa, algo aconteceu.

Andressa parou. Seus olhos se fixaram no chão que pisavam. Algo havia mudado. O mesmo caminho que, na subida, era envolto por névoa espessa, cheio de galhos secos e o som da ausência, agora ganhava outra forma. As árvores ao redor não estavam mais despidas. As folhas tinham cores. Os troncos brilhavam com orvalho recém-nascido. E onde antes não se ouvia nada além do vento, agora se ouviam pássaros. Cantos diversos, como se a floresta tivesse despertado.

 

  E as pedras... as mesmas pedras que antes pontilhavam o caminho como dentes podres de uma estrada abandonada, agora estavam cobertas de flores miúdas, violetas, margaridas, ervas que exalavam aromas suaves.

 

  Andressa virou-se devagar, absorvendo cada detalhe. A luz parecia diferente também. Havia uma tonalidade dourada no ar, como se o sol estivesse encoberto por véus de mel.

 

  Ela olhou para Lázaro, que caminhava adiante, olhos fixos no chão, ombros curvados, alheio ao que acontecia ao redor. A mesma figura soturna, como se a beleza daquele instante não o alcançasse. 

 

  — Você não está vendo isso? — perguntou, a voz cheia de assombro.

 

  Ele apenas olhou de relance, um olhar vazio, como se não houvesse nada a ser visto.

 

  — Vendo o quê?

 

 Ela quase respondeu, mas se calou. Algo lhe dizia que não devia. Ou talvez fosse algo que só ela pudesse ver. Como se Aurora estivesse ali, sussurrando por entre as folhas, sorrindo entre os pássaros. Era um presente para ela, não para ele. Um aviso. Um chamado. Ela sabia.

 

  E então, ao pisarem na soleira da casa, tudo se dissipou. Como se o limiar entre mundos tivesse se fechado. As flores sumiram. O canto cessou. A névoa retornou como se nunca tivesse ido embora. Tudo voltou ao limbo.

 

  Andressa entrou em silêncio. Sentia-se como alguém que acabara de despertar de um sonho e não sabia se havia dormido. Caminhou até a mesa onde o caderno repousava e o pegou com ambas as mãos. Havia algo de sagrado naquela ação.

 

  Virou-se para Lázaro, que observava de pé, entre sombras e madeira envelhecida.

 

  — Eu vou escrever, disse ela. Toda a verdade. Mesmo que ninguém acredite. Mesmo que pensem que enlouqueci. Porque... agora eu vi.

 

  Ele não respondeu com palavras. Mas o olhar, pela primeira vez, pareceu menos opaco. Menos ausente.

 

  Andressa ajeitou o casaco sobre os ombros, colocou o caderno contra o peito e dirigiu-se à porta. Quando abriu, sentiu o frio noturno tocar seu rosto como uma advertência. Lázaro ficou parado, como uma estátua viva entre o tempo e a memória.

 

  Ela desceu os degraus da varanda. Quando olhou para trás, ainda o viu de pé, imóvel, como se quisesse dizer algo, mas não soubesse como.

 

  Na estrada de volta à vila, o caminho estava como antes: sombrio, frio, silencioso. Nenhuma flor. Nenhum pássaro. Mas ela não se importava. Já havia sido tocada.

Ao chegar à pousada, Dona Matilde, a anfitriã de olhar arguto e mãos de avó, a recebeu com uma sobrancelha erguida.

 

  — Tarde para andar sozinha por aí, minha jovem...

 

  Andressa sorriu, com aquele brilho nos olhos que nascia quando uma história ganhava corpo.

 

  — Eu precisava. E agora preciso de um favor.

 

 — Diga.

 

  — O melhor uísque que tiver. E uma noite de silêncio.

 

  A velha senhora soltou uma risada curta e foi até um pequeno armário antigo. Tirou uma garrafa envolta em pano escuro, soprou o pó com delicadeza.

 

  — Guardava este para uma ocasião especial. Acho que acabou de chegar.

Andressa aceitou o copo com gratidão. Sentou-se por alguns minutos no salão vazio da pousada. O gosto forte e amadeirado do uísque aquiesceu-lhe a garganta, reacendendo a centelha do leão que há pouco rugia abafado. Estava viva de novo. Pronta.

 

  Despediu-se com um leve aceno e subiu para o quarto. A noite ainda era longa, mas o primeiro capítulo já se escrevia sozinho em sua mente.

 

...

 

  Enquanto isso, na casa silenciosa no limite da vila, Lázaro permanecia onde estava. A lareira ardia em brasa viva. As sombras dançavam pelas paredes. Ele ergueu os olhos devagar, observando o quadro acima da lareira.

 

  O quadro de Aurora.

 

  As três borboletas ainda estavam lá, imóveis, pousadas sobre a moldura. Como se fossem parte da pintura. Como se a alma dela ainda estivesse ali, esperando.

 

  Lázaro, com um leve suspiro, sentou-se na poltrona em frente ao fogo e permaneceu olhando. Não dizia nada. Não precisava. Porque ali, entre silêncio e brasas, a presença de Aurora se fazia real. E talvez, só talvez, ele estivesse pronto para deixar alguém abrir as portas que ele manteve trancadas por tanto tempo.

 

Em anos, ele não escreveu outra carta.

Continua...

A Sales
Enviado por A Sales em 01/07/2025
Alterado em 01/07/2025
Copyright © 2025. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.
Comentários