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Capítulo 4

Onde Jazem as Palavras Caladas

A colina do que não foi esquecido

 

  O sol já havia deixado de lutar contra as nuvens em Ellenshade quando Lázaro colocou o caderno sobre a mesa de madeira, diante de Andressa. O som do couro velho tocando a superfície foi seco, grave, como o som de algo que esperou tempo demais para ser ouvido. Ele o empurrou levemente em direção a ela e disse com a voz baixa, mas firme:

 

  — Se eu permitir que você escreva... deverá contar toda a verdade. A que foi escondida. A que ninguém acreditará.

 

  O ar da casa pareceu pesar. A sala, iluminada apenas pela luz fraca que entrava por frestas nas janelas cobertas por rendas antigas, tornava tudo mais íntimo, mais denso. O cheiro era de madeira úmida, de ervas ressecadas e cera derretida. A lareira crepitava com lentidão.

 

  Andressa não tocou o caderno. Seu olhar estava fixo em Lázaro, tentando decifrá-lo. Havia ali uma alma feita de cicatrizes. Um homem de rosto pálido e intenso, olhos escuros que pareciam atravessar os séculos, e uma presença que fazia a sala parecer menor. Tatuagens escapavam por debaixo das mangas da camisa preta: símbolos antigos, linhas esotéricas, marcas de quem já havia lidado com o invisível.

 

  Ela respirou fundo.

 

  — Antes que eu lhe prometa qualquer coisa..., disse Andressa, erguendo o queixo com a altivez natural de quem nasceu para não se curvar, quero saber algo antes.

Lázaro se recostou na cadeira, cruzou os braços sobre o peito e assentiu com um gesto quase imperceptível.

 

  — O que deseja saber antes?

 

  Ela levantou-se. Caminhou pela sala em silêncio. O som de seus passos sobre o assoalho ressoava como uma conversa muda com as paredes. Parou diante da janela lateral, afastou a cortina rendada com leveza. A vila parecia repousar sob uma névoa mansa.

 

  — É verdade... que ela está enterrada lá em cima? perguntou, sem se virar. A voz saiu firme, mas o coração batia como um tambor tribal.

 

  Lázaro permaneceu imóvel por alguns segundos. O rosto, antes tenso, agora era uma pintura viva de conflito. Seus dedos se entrelaçaram com força. Não era uma pergunta qualquer. Era a chave de tudo.

Ele ia responder, mas parou. Uma brisa leve atravessou a sala. Vinha justamente da janela lateral, onde ele estava sentado. Era incomum sentir vento ali dentro. E foi nesse instante que elas apareceram.

 

  Três borboletas adentraram como se fossem convidadas. Uma era Morpho azul, brilhante como lapis-lazúli. Outra, uma Vulcana, com tons alaranjados e pretos, vibrante e densa. A terceira, uma Pieris brassicae, quase translúcida, branca como véu de noiva. Elas giraram lentamente ao redor da sala e pousaram na moldura do quadro acima da lareira, o único que ainda tinha cor.

 

  Lázaro as observou com os olhos arregalados, mas sem medo. Era como se um sinal muito esperado, há muito prometido, finalmente tivesse chegado. Algo dentro dele se partiu e se reconstruiu no mesmo instante.

 

  Aurora havia permitido.

 

Era o que ele precisava para saber que não estava traindo a memória dela.

 

  Ele se levantou lentamente. Os olhos encontraram os de Andressa com uma nova expressão. Ainda havia dor, mas havia também aceitação. Uma entrega.

 

  — Venha comigo, disse ele, com a voz baixa, quase como se falasse para o próprio tempo.

Andressa não perguntou. Não era o momento de palavras. Apenas pegou o casaco pendurado na poltrona e o seguiu.

 

  Saíram da casa em silêncio. A porta rangeu como se protestasse. Lá fora, a vila estava imersa em tons de cinza, como se o mundo tivesse esquecido as cores. As árvores sussurravam, e a névoa dançava rente ao chão.

 

  O caminho até a colina era uma trilha de pedras úmidas e galhos secos. Subiam entre árvores altas que pareciam tocar o céu. Nenhum som de pássaros. Apenas os passos deles e o som do vento.

Andressa olhava em volta, sentindo como se estivesse dentro de um sonho. Mas o frio na espinha era real. O peso do lugar também. Cada passo era como adentrar mais fundo na história de alguém, ou nos próprios medos.

 

  No topo da colina, havia um pequeno círculo de pedras. Ao centro, um túmulo simples. Sem nome. Sem data. Apenas um broto solitário de lavanda crescendo ao lado, resistindo ao clima.

Lázaro ajoelhou-se diante do túmulo. Tocou a terra com as mãos e murmurou algo que Andressa não entendeu. Talvez não fosse pra entender.

 

  — Ela está aqui, disse ele enfim. — Aurora. Minha esposa. Minha flor.

 

  Andressa ficou em pé, observando. Uma parte dela sentia que não deveria estar ali. Mas outra, mais forte, sabia que ali começava a verdade que ele havia prometido contar.

 

  — E agora? perguntou ela, o olhar preso no broto solitário.

 

  Lázaro levantou-se devagar. Os olhos dele, cheios de sombra, agora traziam também uma centelha.

— Agora, você escreve. Mas com o coração aberto. E a coragem de quem sabe que vai atravessar um mundo que ninguém mais ousaria tocar.

 

  Andressa assentiu. E pela primeira vez em muito tempo, sentiu-se pronta para escrever não apenas com técnica, mas com alma.

 

A Sales
Enviado por A Sales em 01/07/2025
Alterado em 01/07/2025
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