Capítulo 2
A Flor Que Não Voltou a Florescer
A história antes da sombra
Antes de Ellenshade, houve a cidade. Antes da neblina e da escuridão que hoje acompanha Lázaro Seraphine, existia um homem de olhar igualmente intenso, mas de sorriso rarefeito, como se já soubesse que certas felicidades não duram. Ele era professor de filosofia numa universidade onde ideias livres eram tratadas com receio. Seus pensamentos, repletos de simbolismos, ocultismo e existencialismo, causavam inquietação nos reitores e fascínio em alguns poucos alunos.
Mas foi numa tarde cinza, entre livros antigos e uma estufa de flores, que ele conheceu Aurora. Seu nome fazia jus ao que ela era: luz em forma de mulher. Dona de cabelos cor de mel em ondas desordenadas e olhos que pareciam ter o dom de acalmar tormentas, Aurora cultivava flores com a mesma devoção com que cultivava ideias. Não era uma mulher de discursos longos, mas suas palavras brotavam como poesia quando falava de borboletas, criaturas que, para ela, representavam a alma em processo de libertação.
O amor entre os dois foi imediato e estranho. Ele, soturno, fechado em livros que falavam de fim e renascimento. Ela, solar, presa ao mundo das cores, das flores e do voo livre dos insetos. E, ainda assim, havia uma dança perfeita entre eles, uma cumplicidade que dispensava explicações.
Viviam num pequeno apartamento rodeado de vasos suspensos, e a presença de Aurora fazia o concreto parecer fértil. Lázaro, pela primeira vez, sorria ao acordar. Ela o chamava de "meu silêncio com olhos", e ele dizia que ela era o som mais bonito que o mundo podia produzir. Havia dias em que dançavam ao som do nada, apenas pelo prazer de estar perto.
Mas o mundo lá fora, com suas regras, julgava o que não compreendia. A ideologia de Lázaro, sobre o sagrado sombrio, sobre a alma ser feita de trevas e luz, incomodava. Uma denúncia anônima, uma acusação de doutrinação, uma investigação informal… e ele foi afastado. Aurora segurou sua mão como quem segura raízes durante um vendaval.
Foi ela quem propôs a fuga. Encontraram uma casa antiga à venda numa vila esquecida por mapas. Ellenshade. Aurora dizia que o lugar era cercado por silêncio fértil. Lázaro via nas árvores e na névoa uma chance de desaparecer.
Mudaram-se numa primavera. Aurora trouxe mudas de flores, pendurou sinos de vento, espalhou velas com aromas suaves pela casa. Aos poucos, o lugar ganhou vida. E nas manhãs frias, ela saía com uma manta nos ombros para colher pequenas borboletas que pousavam em seus dedos como se a reconhecessem.
— Elas me ouvem, dizia, com aquele sorriso de canto. — E eu escuto o tempo todo o que não se diz.
Lázaro, mesmo envolto em sua densidade, achava paz ao observá-la. Seus textos começaram a mudar. Ainda falava da morte, mas agora havia passagens sobre renascimento. Escrevia não mais como quem lamenta, mas como quem compreende.
Na vila, poucos se aproximavam. Achavam-nos estranhos, fora de lugar. Mas Aurora, com seu jeito simples e afetuoso, conquistava o padeiro, a senhora das ervas, as crianças que passavam correndo em frente à casa. Todos a amavam. E era impossível não amar.
Numa tarde de outono, com as folhas douradas cobrindo os caminhos de pedra, Lázaro foi à vila. Aurora ficara cuidando do jardim, preparando um buquê para secar entre páginas de um livro. Quando ele voltou, horas depois, encontrou a casa silenciosa demais.
As velas ainda acesas. O buquê pela metade. A porta dos fundos entreaberta. E Aurora… caída junto ao pé de lavanda, o corpo leve como se dormisse, mas sem cor. Sem pulso. Sem mais borboletas ao redor.
Lázaro gritou, mas a floresta respondeu apenas com vento.
O médico da vila não soube dizer a causa. Coração, talvez. Ou um veneno natural que ela mesma colhera sem saber. Ninguém ousou afirmar nada. Mas para Lázaro, o silêncio do mundo foi a resposta mais cruel.
O que havia de luz dentro dele apagou com ela. Enterrou Aurora no alto da colina, onde a névoa era menos densa. Lá, plantou todas as sementes que ela guardava com carinho. Nenhuma germinou. A terra recusava beleza desde então.
Ele passou dias sem sair. Parou de comer. Rasgou os próprios textos. E na primeira noite sem ela, escreveu sua primeira carta. Queimou ao final. E continuou a fazer isso noite após noite.
Alguns dizem que ele fala com ela. Outros que ela nunca partiu. Mas o que se sabe é que, desde aquele dia, Lázaro tornou-se sombra do que já foi. Rígido. Silencioso. Com os olhos perdidos em algum lugar entre o mundo dos vivos e o outro.
A casa passou a exalar jasmim à noite, mesmo quando não havia flores. E as borboletas, que antes dançavam ao redor da casa, nunca mais voltaram.