Sinopse
O Coração Queimado de Lázaro
Um conto gótico sobre a dor da ausência, o amor que transcende a morte e os segredos que a noite insiste em guardar.
Lázaro Seraphine vive isolado na vila de Ellenshade, cercado por neblina, florestas e sussurros antigos. Considerado um louco por uns, um amaldiçoado por outros, ele carrega uma história que ninguém ousa ouvir por completo: todas as noites, Lázaro escreve cartas para sua esposa morta, e todas as cartas desaparecem misteriosamente nas chamas da lareira. Dizem que ela ainda responde. Dizem que o amor entre os dois nunca morreu, apenas se ocultou entre véus que os olhos comuns não conseguem atravessar.
Marcado por tatuagens esotéricas, pela introspecção feroz e por uma dor que o tempo não conseguiu apagar, Lázaro se tornou uma lenda viva, ou uma assombração vestida de homem.
Até que Andressa chega.
Forasteira, escritora, e guiada por um fascínio por lendas esquecidas, Andressa carrega em si a força do sol e o orgulho dos leoninos. Ela não recua diante do mistério, pelo contrário, se aproxima dele com a coragem de quem busca algo além do que é visível. Atraída por Lázaro e pela inquietante beleza de sua história, ela começa a desenterrar segredos que talvez devessem permanecer adormecidos.
O que começa como uma busca por inspiração literária torna-se uma jornada emocional entre o real e o invisível, entre o amor e a loucura. Quando a Noite das Sombras se aproxima, um ritual ancestral em que vivos e mortos se tocam por um breve instante, Andressa precisará decidir se está disposta a se perder para salvar alguém que talvez já esteja irremediavelmente perdido.
O Coração Queimado de Lázaro é um conto gótico contemporâneo sobre amores que não morrem, dores que atravessam o tempo e verdades que só a noite tem coragem de revelar.
“Há dores que não gritam, mas queimam.
E há amores que, mesmo depois de mortos, continuam escrevendo.”
— L. Seraphine
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Capítulo 1
Onde Moram os Olhos da Noite
A chegada de Andressa à vila de Ellenshade
A neblina cobria as colinas como um véu grosso, e o céu, ainda que fosse manhã, guardava a tonalidade do crepúsculo. A vilarejo de Ellenshade, encravada entre florestas de coníferas escuras e montanhas que jamais deixavam o frio dissipar, parecia existir fora do tempo. As casas, todas feitas de pedra musgosa e madeira escura, inclinavam-se levemente umas às outras como se guardassem segredos antigos, pesados demais para ficarem de pé sozinhas.
Andressa chegou à vila num dia silencioso, com um vestido simples de algodão vinho, botas gastas de viagem e um olhar que chamava atenção mesmo quando ela não queria. Carregava apenas uma mala de couro caramelo, marcada pelo tempo, e uma coragem incandescente que contrastava com o ambiente noturno de Ellenshade. Era leonina, e seu andar denunciava isso: firme, orgulhoso, com uma graça que não pedia desculpas.
Seus cabelos negros estavam presos num coque frouxo, e mechas dançavam ao redor do rosto como um vai e vem sincronizado de um balé perfeito. Os olhos, cor de âmbar, observavam tudo com curiosidade inquieta. Ela era o tipo de pessoa que, mesmo em silêncio, dominava o espaço. Sua presença fazia as janelas tremerem. Sua energia, solar e altiva, parecia desobedecer à escuridão daquele lugar.
Na estalagem onde se hospedou, a dona, uma senhora de mãos nodosas e olhos miúdos chamada Matilde, a observou com reserva, como se tentasse entender o que a trouxera àquele fim de mundo.
— Procurando algo, moça? Ou fugindo de alguma coisa? perguntou, enquanto servia uma caneca de chá escuro.
— Talvez um pouco dos dois, respondeu Andressa, com um meio sorriso. Estou escrevendo um livro sobre lendas esquecidas. E ouvi que essa vila tem histórias que ninguém ousa mais contar.
Matilde franziu o cenho.
— Tem histórias, sim..., mas algumas são melhor enterradas. Como o tal do Lázaro Seraphine.
Andressa pousou a caneca devagar.
— Quem é ele?
— Um doido. Um herege, se me permite. Mora na casa que beira o penhasco, a última antes da floresta. Vive falando com o vento, escrevendo coisas pro fogo. Dizem que perdeu a esposa, e com ela, o juízo. A mulher se inclinou, baixando a voz. E dizem também... que ela ainda responde.
No rosto de Andressa, uma expressão indecifrável: mistura de ceticismo, fascínio e desafio. Ela sempre teve um dom para enxergar além das palavras e, naquele instante, soube que encontrara seu personagem principal.
Na tarde seguinte, enquanto a vila cochilava sob uma névoa fria, Andressa seguiu o caminho de pedras até a casa indicada. Era uma construção alta e solitária, de janelas estreitas e torres angulosas. Um jardim selvagem a cercava, cheio de ervas que ela não sabia nomear.
Antes mesmo de bater, a porta se abriu.
Ali estava ele: Lázaro Seraphine. Alto, de ombros largos, pele muito clara e olhos tão cinzentos que pareciam conter tempestades antigas. Os cabelos negros e longos tocavam os ombros, e a barba por fazer dava-lhe um ar ainda mais soturno. As tatuagens nos braços estavam parcialmente visíveis sob a camisa preta de mangas arregaçadas: de um lado, um pentagrama envolto por runas; do outro, um escorpião que parecia mover-se com sua respiração.
— Não costumo receber visitas. Sua voz era baixa, profunda, quase um sussurro que arranhava.
— Não costumo me apresentar sem bater. Ela sorriu, inclinando a cabeça como quem observa um animal raro.
— Então estamos quites.
Um silêncio confortável se instalou. Ele a observava como quem avalia a natureza de um presságio. Ela sentia-se estranhamente segura ali, como se já o conhecesse de antes, ou de um sonho.
— Vim porque soube que o senhor escreve. Cartas. Histórias. Palavras que queimam. Ela disse sem rodeios.
Ele a encarou, como se as frases dela tivessem peso real.
— E você? Escreve o quê?
— Verdades escondidas em fábulas. E mentiras que fazem mais sentido que os fatos.
Um canto de sorriso surgiu no rosto de Lázaro.
— Pode entrar, então.
A casa era como ele: escura, ordenada por um caos estético, cheia de livros empilhados, quadros com símbolos antigos, penas mergulhadas em tinta seca. O cheiro era de papel antigo, tabaco e jasmim.
No centro da sala, uma lareira acesa crepitava. Acima dela, um espelho antigo emoldurado em ferro retorcido. Andressa sentiu que aquele lugar era um santuário, e uma prisão.
— E sua esposa?
A pergunta saiu antes que pudesse pensar.
Lázaro não a corrigiu, nem fingiu surpresa. Apenas respondeu:
— Ela vive no que não se pode ver. Ainda me escreve... E eu a respondo. Mas só na Noite das Sombras, quando o mundo se permite ouvir.
Andressa não sorriu. Em vez disso, sentou-se na poltrona de couro gasta e disse:
— Então me conte essa história. E eu decido se a escrevo.
Ele acenou com a cabeça, indo buscar um caderno escuro, fechado com uma tira de couro. Ao colocá-lo sobre a mesa, algo mudou no ar.
Andressa sentiu o calor do fogo subir pela espinha. Um arrepio. Um aviso.
Mas ela não recuou. Leonina, como sempre, avançou.
Continua no Capítulo 2...