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Textos

Este foi inspirado na crônica da poetisa A Morcega.

Que você pode ler

Morcega Foi Ver o Sol

Também pode ouvir a musica aqui.

 

Um Dia de Sol de A Morcega

Quando o brilho do mundo encontrou sua escuridão e ela decidiu permanecer um pouco mais.

 

  Ela sempre foi da noite.

 Não por escolha consciente, mas por natureza. Assim como os morcegos que deslizam entre sombras, com olhos atentos e asas silenciosas, a escuridão era o abrigo, o refúgio dela. Havia poesia na noite, uma dança que só ela parecia entender. O céu cravejado de estrelas, o silêncio entre as horas, o mundo desacelerando... ali ela se encontrava. Ali, ela era.

 

  Mas naquele dia, algo mudou.

 

  Acordou com o som abafado do vento atravessando as janelas, e uma luz dourada escapava teimosa por entre as frestas da cortina. O bebê já balbuciava no berço, e o filho mais velho pulava pela casa, animado como quando um presente. Ela olhou pela janela e pensou: hoje vou sair da minha caverna.

Respirou fundo.

 

Se arrumou devagar. Escolheu um vestido leve, um laço discreto no cabelo. Preparou as coisas do bebê, fraldas, lenço, mamadeira, e chamou a prima:

— Vamos à pracinha?

— Hoje? Com esse sol? — a prima olhou surpresa.

— Sim. Quero tentar... sentir o dia.

 

  Pegou o bebê no colo o outro acompanhou e saíram. Era como atravessar uma ponte entre dois mundos. O sol bateu em seu rosto como um abraço que há muito não sentia. E embora o instinto ainda buscasse sombra, havia uma energia diferente naquela luz.

 

  A pracinha estava cheia. Crianças riam, pássaros voavam entre as árvores, e o cheiro de pipoca misturava-se com o das flores amarelas que enfeitavam algumas árvores ali na praça. Era como se o universo estivesse em festa e ela, convidada surpresa.

Sentou-se num banco de madeira meio gasto. Ao lado, a prima ajeitou o carrinho com o bebê. O filho mais velho correu direto para o escorregador, e logo se juntou a outro garotinho de olhar curioso e cabelo bagunçado.

 

  — Você viu? — ela sussurrou. — Ele está brincando com outro menino.

A prima sorriu.

 

  — Está mesmo. E olha só a felicidade no rosto dele...

Ela ficou observando. Ver o filho brincando, decidido com o novo amiguinho, agora sorria com uma liberdade que a desarmou. Uma pontada nasceu em seu peito, aquela mistura estranha de amor, medo e gratidão.

 

  Ela estava ali por eles. Mas agora percebia que estava também por ela mesma.

Enquanto o observava, alguém se aproximou.

 

  — Que bebê lindo você tem. Disse uma voz suave. Era uma senhora de cabelos grisalhos e vestido florido.

— Obrigada, ela sorriu, surpresa com o gesto gentil.

— Posso? — a senhora apontou para o banco ao lado.

— Claro.

 

  A senhora sentou-se com a delicadeza de quem carrega histórias. Logo começaram a conversar. Ela descobriu que se chamava Dona Vera. A senhora falou do neto que brincava com seu filho, de um tempo em que a praça era vazia, e que agora, mesmo com os problemas de saúde, fazia questão de sair ao sol sempre que possível.

 

  — O sol cura, disse Dona Vera. — Cura a pele, a alma, os olhos. Só precisamos deixá-lo entrar.

 

  Ela olhou ao redor. Crianças corriam gritando, uma menina passava de bicicleta com fitas nos guidões, e um senhor vendia sorvetes de um carrinho improvisado. A luz da tarde fazia as flores amarelas cintilarem como ouro.

 

  Ela ofereceu um sorvete a dona Vera.

— Aceita um? É de maracujá, meu favorito.

— Por que não? — ela aceitou, meu relutante.

 

  Ali estava, ela, a senhora, a prima e os meninos, sentada ao sol, e sentindo... liberdade.

Enquanto o bebê mamava em seu colo, a prima comentou:

— Você parece diferente hoje.

— Eu me sinto... diferente.

— Como assim?

— Me sinto... viva. Como se o mundo estivesse aqui o tempo todo me esperando.

A prima apertou sua mão.

— É bonito ver você assim.

 

  Ela não sabia quanto tempo havia se passado. Talvez uma hora, talvez duas. Mas naquele tempo suspenso, algo nela mudava. A praça era mágica. Não por ser perfeita, mas por lembrar que existe vida além do esforço, além da luta silenciosa de ser mãe, esposa, mulher, e ainda guardar os próprios monstros na caverna.

 

  Ela um grupo de crianças brincando de esconde-esconde. Uma menina caiu e se levantou rindo. Outra mãe a ajudou a limpar os joelhos. E ela percebeu: havia ali uma rede invisível de empatia, de acolhimento, entre todas aquelas mulheres.

Dona Vera, entre um gole de água e uma história da juventude, comentou:

 

  — Quando tive meu primeiro filho, me escondi por anos. Tinha medo de não dar conta, de errar.

— E conseguiu sair disso? — ela perguntou.

— Consegui. Um dia, como você, aceitei um sorvete.

Elas riram. E naquele riso, ela sentiu que estavam conectadas por algo além do acaso. Talvez destino. Talvez poesia.

 

  O sol já começava a descer, tingindo o céu com um tom alaranjado que fazia sombra no banco onde estavam. O vento brincava com as folhas e o vestido de uma moça do trailer de algodão doce esvoaçava com graça. Era tudo simples. E grandioso.

O filho se aproximou, suado e sorridente.

— Mãe, posso vir amanhã também?

— Pode, meu amor. A gente vem sim.

 

  Ela olhou para ele, para o bebê dormindo no carrinho, para a prima que agora tirava fotos das árvores em flor, e para Dona Vera, a amiga recém-descoberta, e respirou fundo.

Foi aí que entendeu: a caverna era só uma metáfora. Um lugar onde se escondia não só da luz, mas da entrega. Do amor. Da amizade. Mais nunca de si mesma.

 

  Na adolescência, quando gostamos de alguém pela primeira vez, ficamos sem saber o que dizer. Era assim que ela se sentia com aquele sentimento novo por si mesma. Era como redescobrir o amor: sem culpa, sem pressa.

 

  Talvez não voltasse à praça todos os dias, talvez ainda precisasse da noite para escrever, pensar e se proteger. Mas agora ela sabia que também podia existir sob o sol.

E isso era libertador.

 

  Levantou-se, agradeceu a Dona Vera com um abraço demorado, ajeitou o bebê no colo e sorriu para a prima.

 

  — Vamos? — perguntou.

— Vamos. Mas você vai escrever sobre hoje, né?

— Claro. Foi poesia pura.

— Vai falar que eu fiz parte dessa morcega no sol. A prima falou sorrindo.

— Claro. Vou dizer que você também gostou.

 

  Foi mesmo. Pura poesia. Ela pensou olhando as flores cair lentamente até o chão.

Quando chegou em casa e sentou para escrever, as palavras escorreram como o derreter do sorvete ao sol. Quis deixar registrado aquele dia, não por ela apenas, mas por todas as mulheres que, como ela, criam seus filhos, amam seus esposos, cuidam de suas casas, enfrentam silêncios, e mesmo assim, carregam poesia na alma.

   

  Dias depois...

  — Alô...

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“A toda mulher guerreira que talvez ainda esteja na própria caverna: que o sol a encontre sem pressa, mas com coragem. Que se permita, ao menos uma vez, um dia de sol. E que nesse dia, sintam que não está sozinha.”

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Uma homenagem a você e de igual a todas as mulheres. Um grande abraço.

 

A Sales
Enviado por A Sales em 22/06/2025
Alterado em 22/06/2025
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