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Textos

Introdução ao capítulo

  Neste segundo capítulo de Cidade das Uvas, você leitor será conduzido a um tempo em que os silêncios falam mais do que as palavras, e os atrasos do destino salvam vidas. Mas não poupam dúvidas. Carla, agora senhora de suas vinhas e do próprio nome, começa a perceber que há mais por trás dos bilhetes deixados por André do que simples ternura velada. Ao recusar o esquecimento e abrir as gavetas da memória, ela se vê diante de um caderno antigo, um nome inesperado e a certeza de que o passado sussurra mais do que se imagina. É um capítulo onde o amor calado, a perda evitada e o mistério herdado se entrelaçam como os galhos de um parreiral à espera da colheita.

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Antes leia o Capítulo Um

 

CAPÍTULO II

Rastros de Silêncio e Uvas por Colher

Enquanto bilhetes sem assinatura alimentam o coração, um atraso muda o rumo do destino e um nome esquecido reabre feridas do passado.

 

 

  Durante os meses seguintes ao primeiro olhar que não ousou se prolongar, Carla seguia suas rotinas entre as vinhas e os papéis que herdara, como quem pisa firme mesmo sem ver o chão com clareza. O nome de André, ainda que não pronunciado, percorria os corredores do casarão e ganhava corpo nas entrelinhas das conversas murmuradas por empregados atentos demais ao que não lhes dizia respeito. Ela preferia o silêncio às insinuações, mas não podia evitar a sensação estranha quando encontrava um bilhete preso entre os livros da biblioteca ou um lenço deixado no muro de pedra onde costumava se sentar ao fim das tardes.

 

  O silêncio de André não era omissão, mas escolha. E era essa escolha que mais a confundia. As mensagens que ele deixava não vinham assinadas, mas ela sabia. Sentia. Havia um cuidado nas palavras escritas à mão, uma poesia contida nas entrelinhas, uma espécie de coragem disfarçada de recato. Nada de promessas, nada de encontros. Apenas rastros. Como quem chama, mas respeita a distância.

 

  Carla não comentava com ninguém, mas cada bilhete encontrado era guardado no fundo de uma gaveta que ela mesma trancava. Lia e relia à noite, à luz de vela, tentando decifrar o que havia por trás daquelas poucas frases. Havia dias em que achava tudo uma loucura. Noutros, era a única coisa que fazia seu coração bater diferente daquele compasso marcado pelos afazeres diários.

 

   A primavera avançava entre as folhas renovadas dos parreirais, e Carla, agora com vinte e dois anos, comandava com segurança as decisões do vinhedo. Os homens mais velhos, que um dia duvidaram da sua capacidade por ser mulher, agora a consultavam antes de podar um galho ou trocar uma prensa. Ela conhecia cada canto daquela terra, cada uva pelo nome popular e pelo científico. Era respeitada e, para alguns, temida. Sua firmeza vinha do sofrimento prematuro, mas seu olhar ainda guardava um brilho que entregava a menina que fora.

 

  Foi numa tarde abafada, ao retornar da feira de produtores, que encontrou uma nova carta. Desta vez, entre as páginas de um manual antigo sobre fermentação de uvas tintas, deixado sobre a escrivaninha do pai. A caligrafia, suave e precisa, dizia: "Nossos frutos amadurecem com o tempo certo. Talvez o amor também." Carla fechou o livro como quem fecha uma porta aberta por engano. E dessa vez, não conteve o sorriso.

 

  Mesmo sem vê-lo novamente, André tornava-se presença constante. Seu nome ecoava pelas entrelinhas do cotidiano. Nas reuniões do sindicato rural, nos projetos de irrigação, nos avanços sobre os processos de exportação, sempre havia um comentário: "O rapaz da família Costas também pensa assim...". Foi nessas coincidências reiteradas que Carla percebeu: ele também estava olhando além das videiras. Estavam no mesmo campo de visão, embora separados por uma história que os pais não deixaram apagar.

 

  Foi então que uma carta internacional chegou ao casarão. Um convite formal de uma empresa americana interessada em produtores jovens do Velho Mundo para apresentar seus métodos de cultivo em Nova York. Carla fora escolhida como representante da nova geração de vitivinicultores da região. A viagem marcaria sua primeira grande saída da cidade e também o início de uma expansão que ela mesma sonhara em segredo.

 

  Ela preparou-se com zelo. Mandou fazer dois novos vestidos, costurados com tecidos leves mas elegantes, adaptados ao clima que enfrentaria. Arrumou os documentos, respondeu à carta com firmeza e marcou sua passagem. O navio escolhido era o mais comentado da década: o Titanic, embarcação recém-inaugurada e símbolo de modernidade.

 

  Na manhã da partida, uma chuva fina atrasou a chegada da carruagem que a levaria até o porto. As malas já estavam prontas, o chapéu cuidadosamente separado, e o coração ansioso por tudo o que o novo continente poderia trazer. Mas o tempo, mais uma vez, costurava os destinos com linha invisível. Chegou ao cais minutos após o embarque final. O navio, majestoso, já sumia no horizonte.

 

  De volta ao casarão, a decepção era palpável. Carla não chorava em público, mas seu silêncio ecoava pelos corredores. Na cozinha, as empregadas cochichavam sobre o ocorrido quando o rádio, recém-instalado, chiou antes de anunciar a notícia que faria o mundo calar: o Titanic naufragara na travessia, levando consigo mais de mil vidas.

 

  Ela não dormiu naquela noite. Nem na seguinte. Andava pelos cômodos do casarão como quem procura algo que nunca existiu. Não era apenas a tragédia que a abalava. Era a consciência de que a vida, por um capricho, por um atraso de minutos, havia sido poupada. E o peso disso não era leve.

 

  Nas semanas seguintes, ela mergulhou no trabalho. Não queria pensar. Mas tudo à sua volta parecia pedir reflexão. A saudade dos pais, que nunca a deixava. A ausência da avó, que falecera dois anos antes e que sempre parecia estar por perto em cheiro de alecrim ou na textura de um pano antigo.

 

  Numa manhã fria, ao reorganizar as prateleiras do quarto de costura da avó, Carla encontrou uma pequena caixa de madeira. Dentro dela, entre rendas e botões, havia um caderninho de anotações. O couro já envelhecido, as folhas amareladas, o cheiro de coisa antiga que ela conhecia tão bem. Abriu com cuidado. As primeiras páginas traziam receitas de chás, dicas para enxertos, listas de compras.

 

  Mas no meio de uma folha solta, encontrou um nome que nunca ouvira antes. Ou achava que não. Releu três vezes. "Lilian Costa" Seu coração parou por um instante. O sobrenome rival. O mesmo de André. O que significava aquilo?

 

  A mente girava em mil possibilidades. Um parente distante? Uma amiga de juventude? Uma história esquecida propositalmente? As mãos de Carla tremiam ao virar as páginas seguintes. Algumas estavam em branco. Outras traziam datas e frases curtas, como lembretes pessoais. Nada muito revelador. E ainda assim, tudo gritava por respostas.

 

  Sentou-se ao pé da antiga poltrona da avó e folheou o caderno devagar. Cada anotação parecia um enigma. Uma receita de licor. Uma data cercada de corações. Uma frase sem contexto: "Não se pode podar o que nunca floresceu". A avó, sempre tão reservada, deixara pistas que agora vinham à tona com força.

 

  Carla passou o dia inteiro ali. Esqueceu-se do almoço, do tempo, dos compromissos. Algo dentro dela havia sido despertado, algo que talvez estivesse adormecido desde que aprendeu a sobreviver. Era como se, por trás das rivalidades que herdara, houvesse uma história nunca contada, ou contada pela metade.

 

  André. O nome voltava à sua mente com mais intensidade. Será que ele sabia? Será que os bilhetes deixados com tanto cuidado vinham também dessa memória antiga, de algo que seus antepassados viveram, ou tentaram viver, e que agora os envolvia de novo?

 

  Naquela noite, Carla escreveu pela primeira vez uma carta sem destinatário. "Se um nome tem raízes no passado, que fruto ele nos trará agora?" Dobrou o papel, guardou no caderno da avó, e trancou-o no mesmo armário onde guardava os bilhetes de André.

 

  Os dias seguintes correram silenciosos, mas cheios de novas perguntas. A uva começava a amadurecer nas videiras. Era tempo de decisões. E Carla sabia que algumas colheitas não podiam ser adiadas por muito tempo.

 

Fim do Capítulo II.

 

No próximo capítulo,

Carla decide ir além dos rastros deixados. A descoberta do nome Lilian Costa abre fissuras na história de sua família, e ela parte em busca de respostas; seja entre os papéis antigos do casarão, nos relatos dos mais velhos da cidade, ou nos olhares que evitam o passado. No tempo em que as uvas pedem colheita, Carla precisará decidir se está pronta para ceifar também o medo de reviver uma história de amor que talvez nunca tenha sido apenas deles dois ou que nunca pode vir a existir.

A Sales
Enviado por A Sales em 31/05/2025
Alterado em 07/06/2025
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