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Textos

Introdução a Cidade das Uvas

 

  Ao abrir as páginas desta história, o leitor será conduzido entre parreirais que guardam mais do que o doce sabor das uvas — eles escondem silêncios profundos, perdas marcantes e promessas jamais cumpridas. Carla é a protagonista de uma memória costurada com tempo, saudade e força. Desde os quinze anos, quando perdeu os pais, ela precisou amadurecer cedo, aprender com a avó o ofício das uvas e manter vivo o legado da família. Numa cidade onde as vinhas florescem sob o mesmo sol que aquece velhas rivalidades, ergue-se o retrato de uma mulher ousada e determinada, à frente de seu tempo, mas arrastada por obrigações que não escolheu.

  Contudo, esta não é apenas uma história de herança e superação. É também uma história de paixão — daquelas que nascem num instante de olhar e são sufocadas pelo peso do passado. Quando Carla viu André pela primeira vez, filho da família rival, algo dentro dela mudou. Conhecê-lo foi como provar uma fruta proibida: doce demais para esquecer, amarga demais para viver. Nesta narrativa trágica, romântica e histórica, tentarei descrever como se sobrevive quando o coração precisa ser calado, e como, às vezes, o que o destino separa, o silêncio insiste em aproximar.

Ou afastar de de vez (...)

 

 

Capítulo I

Sob a Sombra dos Parreirais

A Dor Que Ensina, o Silêncio Que Herda, o Olhar Que Nunca Esquece

 

 O céu de Jundiaí, naquele verão de 1908, parecia conspirar com o destino. As nuvens, carregadas e lentas, deslizavam sobre os parreirais como uma premonição silenciosa. Na casa simples e bem cuidada dos Mancini, o aroma doce das uvas maduras misturava-se ao luto recente que se instalara como um véu sombrio. Carla, aos quinze anos, observava o movimento contido dos vizinhos que vinham prestar condolências pela perda repentina de seus pais — vítimas de uma febre devastadora que se espalhara pelo interior paulista sem explicação ou piedade.

 

 Não chorava. Havia algo em Carla que recusava a fragilidade. Seus olhos castanhos, profundos como as raízes de um velho parreiral, fitavam o horizonte com uma maturidade que não era sua por direito, mas pela imposição cruel da vida. A dor da perda dilacerava seu peito, mas ela não a deixava escorrer. Guardava-a dentro de si como se fosse um vinho raro que só poderia ser bebido em solidão.

 

 Foi a avó materna, Dona Antonietta, que assumiu a casa e o cultivo. Uma senhora de mãos firmes, feições marcadas e sotaque ainda carregado dos tempos de Gênova, que fazia questão de lembrar que o sangue italiano corria forte na família — tanto quanto o vinho que produziam em suas terras. "A uva não espera tristeza, bambina", disse no primeiro dia após o velório. "Ela precisa de mãos, sol e paciência."

 

 E Carla aprendeu. Sob o sol escaldante, com as unhas sujas de terra e o corpo doído de trabalho, aprendeu a escutar o silêncio das videiras, a reconhecer a hora exata de podar, a entender que o ciclo das estações ensinava mais que qualquer livro. Com Dona Antonietta como guia, transformou sua dor em ação. Se não podia trazer os pais de volta, ao menos garantiria que o legado deles nunca murchasse.

 

 As manhãs eram de trabalho e silêncio. As tardes, de aprendizado com a avó, que lhe ensinava não só a cuidar das uvas, mas a negociar, a ler contratos, a desconfiar dos que vinham com sorrisos fáceis. As noites, essas, eram da ausência. Do quarto vazio dos pais. Do cheiro que ainda impregnava os lençóis, da carta nunca escrita, do abraço jamais dado. E Carla crescia.

 

 Aos dezoito anos, já sabia comandar a colheita com autoridade. Seu corpo, moldado pelo trabalho, ganhava contornos firmes. Sua postura desafiava os padrões da época. Recusava vestidos engomados e preferia blusas abertas no colo, que deixavam o decote livre, como símbolo de liberdade — não de provocação. Os homens da vila murmuravam, as senhoras cochichavam, mas ninguém ousava enfrentá-la. Sabiam que, por trás da beleza, havia uma mulher de aço.

 

 As famílias produtoras de uva em Jundiaí formavam uma rede de tradições, rivalidades e silêncios. Os Mancini eram respeitados, mas os Costa, donos da propriedade vizinha, eram uma presença incômoda. No passado, falava-se de desavenças graves, de um negócio rompido, de um processo judicial abafado. Os velhos diziam que entre Mancinis e Costas, nem vinho se trocava.

 

 Dona Antonietta fazia questão de reforçar: "Nunca confie em quem colhe uvas sem rezar antes." Referia-se ao patriarca dos Costa, homem austero e ambicioso, conhecido por passar por cima de acordos para aumentar seus lucros. Carla ouvia, mas não julgava. Sabia que o mundo era mais complexo que os ditos populares da nona. Ainda assim, respeitava o silêncio sobre aquela família.

 

 Aos dezoito anos, com a saúde da avó debilitada, Carla assumiu o controle de toda a produção. Vestia-se com autoridade: saia longa de linho, botas firmes de couro, blusa clara com mangas arregaçadas e, como sempre, o decote em V que fazia questão de manter — como quem diz ao mundo: “eu existo, eu comando, e ninguém me dobra.”

 

 Naquele janeiro abafado de 1911, durante a Feira da Uva, Carla viu André pela primeira vez. Estava de costas, mas reconheceu o sobrenome no estandarte: Costa. O rapaz se virou ao ouvir um chamado e os olhos de ambos se cruzaram. Ele tinha o porte dos que nasceram no campo, mas o olhar de quem sonhava longe. Por um instante, o tempo parou entre as barracas de vinho, os cestos de uva e o burburinho da festa.

 

 Ela não sorriu. Nem ele. Mas houve algo naquele olhar — um reconhecimento antigo, como se as almas tivessem se cumprimentado antes dos corpos. Carla desviou o olhar, retomou sua marcha, mas algo dentro dela permaneceu suspenso. Não era amor. Ainda não. Era uma pergunta que não sabia ser feita.

 

 Dona Antonietta notou. “Costa”, disse em voz baixa, quase cuspindo o nome. “Se aproxima deles, só por cima do meu cadáver.” Carla não respondeu. Olhava para as mãos, que ainda guardavam o cheiro doce das uvas recém-colhidas, como se ali pudesse encontrar respostas.

 

 Naquela noite, sonhou com parreirais em chamas. Corria por entre eles tentando salvar uma única videira, mas tudo ruía. Acordou suada, com o peito apertado. O nome “André” não foi dito. Mas sentia que havia sido sussurrado em seu sonho como uma ameaça e um presságio.

 

 Os dias seguintes foram de tentativas de esquecer. Enterrou-se no trabalho. Reformou os tonéis. Contratou novos trabalhadores. Expandiu a produção. Recusou três propostas de casamento de filhos de famílias locais. Nenhum deles sabia lidar com sua independência. Nenhum conseguia enfrentá-la sem querer domá-la.

 

 Carla queria mais. Não da vida, mas de si mesma. Queria ser a mulher que os pais sonharam e que a avó educou. Mas também queria entender por que aquele olhar — apenas um olhar — fora suficiente para mexer com certezas tão bem construídas.

 

 André, por sua vez, parecia ter desaparecido. Não o viu mais nas feiras, nem nos campos vizinhos. Mas, por vezes, ao colher sozinha entre as fileiras de uvas, sentia-se observada. Um arrepio, um farfalhar, uma presença que nunca se confirmava. “Besteira”, dizia a si mesma. “É só o calor e o cansaço.”

 

 Certa tarde, encontrou uma rosa vermelha na cerca que separava sua propriedade da dos Costa. Nenhum bilhete. Nenhuma pista. Apenas a flor, viva, vibrante, como uma insinuação. Carla a levou consigo, colocou num copo com água e a escondeu no quarto. Não contou à avó.

 

 Naquele dia, não conseguiu dormir. Pensava no absurdo de uma rosa ter mais poder do que um beijo. De um gesto anônimo carregar mais verdade do que palavras. Perguntava-se quem era André além do sobrenome proibido. Que sonhos tinha? Que valores? Que culpa herdava?

 

 O tempo seguiu. A produção cresceu. Carla tornou-se conhecida como uma das mulheres mais respeitadas — e temidas — da região. Mas havia em seus olhos algo que nenhum sucesso conseguia preencher. Um vazio lento, como um vinho envelhecido que, por não ser bebido, azeda.

 

 Dona Antonietta, apesar da idade avançada, permanecia vigilante. Embora Carla já comandasse tudo, a avó ainda fazia questão de repassar as contas no fim da semana, de provar os vinhos novos, de opinar sobre a escolha dos tonéis e dos fornecedores. Mas sua saúde declinava, como as folhas que secam no fim da safra. Tossia à noite, escondida, e caminhava com o auxílio de uma bengala que jurava não precisar. “É só o frio nos ossos, bambina”, dizia com um sorriso gasto.

 

Carla percebia a aproximação da despedida com a mesma clareza que lia o ponto certo da maturação das uvas. Não comentava. Apenas passava mais tempo com a avó, colhendo suas histórias como quem colhe cachos raros, prestando atenção às expressões antigas do dialeto, às receitas dos vinhos mais complexos, às lembranças sobre os pais que ela tentava manter vivas através da voz da nonna.


 À medida que o tempo passava, os empregados passaram a ver Carla não apenas como patroa, mas como uma espécie de guardiã. Os mais velhos diziam que ela tinha “alma de terra” — como se fosse parte do solo que pisava. Não havia distância entre ela e os trabalhadores. Comia com eles quando necessário, ouvia suas necessidades, defendia-os de abusos. Mas era firme. Não tolerava falhas nem desculpas. Sabia que o nome dos Mancini só se manteria forte se a excelência fosse constante.


 Entre as terras dos Mancini e dos Costa, havia mais do que uma cerca de madeira: havia memórias enterradas, mágoas nunca cicatrizadas. Diziam que um irmão de Dona Antonietta havia sido prejudicado pelos Costa na venda de uma colheita, décadas antes. Outros juravam que havia havido um amor proibido entre um jovem Costa e uma das tias de Carla, que terminara em humilhação e fuga. O certo é que o ódio era antigo, e sobrevivia mesmo entre os que nem viveram os fatos.


 Carla, apesar de ouvir os relatos com respeito, não os tomava como verdades absolutas. Achava triste que a história decidisse o futuro de quem ainda não tivera chance de escrever sua própria linha. Mas sabia também que certos nomes carregavam pesos, e o de André, mesmo silencioso, era um desses.


 De tempos em tempos, o nome dele surgia entre cochichos dos empregados. Diziam que estava assumindo parte dos negócios do pai, que vinha modernizando os parreirais da família rival com técnicas importadas da Europa. Que tinha ideias novas, que falava pouco, mas observava muito. Carla escutava e fingia desinteresse, embora cada frase a deixasse em alerta, como uma videira diante do primeiro vento frio da estação.


 Uma tarde, voltando de uma negociação na cidade, Carla cruzou com uma carroça carregada de tonéis. O homem que a guiava tinha cabelos escuros, e por um breve segundo, ela teve certeza de que era André. Ele também a viu. Não houve saudação, apenas um cruzar de olhares veloz e intenso, como faísca entre pedras. Carla desviou os olhos, mas sentiu o rosto arder. Não por timidez, mas por raiva de si mesma — de ainda ser tocada por algo tão proibido e sem nome.


 Nessa noite, foi até o vinhedo mais antigo da propriedade, onde seus pais haviam plantado suas primeiras videiras. Sentou-se no banco de madeira sob a parreira frondosa e olhou para o céu. A Lua estava cheia, e o silêncio da noite parecia sussurrar perguntas que ela não queria responder. Pensou nos olhos de André, na rosa deixada na cerca, nas histórias dos que vieram antes. Pensou no peso de ser uma Mancini.


 Na semana seguinte, Carla encontrou um caderno antigo escondido no baú de sua mãe. Era um diário. Nele, descobriu registros sobre os primeiros anos da propriedade, sobre os sonhos que seus pais tinham para o futuro das terras, mas também uma breve menção a um “acordo quebrado com os Costa”, sem detalhes. As palavras terminavam abruptamente, como se houvesse dor demais para ser escrita. Carla fechou o caderno com cuidado, sentindo que parte do passado ainda estava por ser contado.


 No mercado, ao buscar especiarias para a produção de um novo vinho, ouviu duas mulheres comentando sobre André. “É um rapaz diferente. Não tem o orgulho do pai. Parece que pensa por si.” Carla fingiu ignorar, mas levou consigo aquelas palavras como se fossem um convite à dúvida. Talvez, afinal, não fossem todos os Costa iguais.


 A avó adoeceu de vez no outono daquele mesmo ano. O médico vinha da cidade com pouca frequência, e o diagnóstico era vago: “idade, coração fraco, tempo demais carregando o mundo nas costas”. Carla permaneceu ao lado da nonna, revezando entre a produção e o quarto, lendo em voz alta trechos da Bíblia em italiano, preparando infusões com folhas do quintal. Era um luto antecipado, um adeus sussurrado entre cuidados e memórias.


 No último dia de lucidez, Antonietta segurou a mão da neta com força e disse: “Carregue o nome com honra, mas viva com o seu coração. Eu não vivi.” Carla conteve o choro. Naquela frase, parecia haver uma confissão que não se completou. Um arrependimento. Uma chave que abria portas para o passado e para o futuro.


 Antonietta faleceu três dias depois, ao amanhecer, com o rosto sereno como quem enfim descansava. Carla vestiu preto, organizou o velório com a precisão de quem aprendeu a conter o próprio luto, e sepultou a avó no mesmo túmulo dos pais, ao lado da parreira mais antiga da propriedade.

 

 Nos dias seguintes, algo em Carla se partiu, mas não se desfez. Era como se a morte da avó tivesse rompido o último laço com a geração anterior, deixando-a livre — e solitária — para escrever o próximo capítulo. Os olhos castanhos tornaram-se ainda mais escuros. Seu andar, mais firme. Mas dentro dela, uma dúvida crescia como semente sem nome: o que fazer com tudo que herdou, inclusive o silêncio?


 Foi nesse período que André voltou a aparecer. Não fisicamente, mas através de pequenos sinais. Uma caixa de garrafas devolvida com um bilhete sem assinatura elogiando o sabor. Um lenço de linho deixado no galho de uma árvore na divisa das terras. Um rumor de que ele perguntara por ela na feira, disfarçado de curiosidade.


 Carla passou a caminhar sozinha ao entardecer, contornando os limites da propriedade como quem procura respostas no ar. Sabia que o que nascia dentro dela não era apenas curiosidade. Era uma inquietação. Um desejo maldito por algo que talvez nunca pudesse viver. O tempo, o nome, as histórias — tudo estava contra. Mas seu peito insistia.


 Passava horas revirando documentos antigos, buscando mais informações sobre o passado entre as famílias. Mas os papéis falavam pouco. As maiores verdades estavam nos olhares dos antigos, nos silêncios entre frases, nas mãos que tremiam ao mencionar os Costa.


  Até que, numa manhã nublada, Carla encontrou um envelope preso à cerca, com seu nome escrito em letra firme. Dentro, uma única frase: “Nem todo herdeiro repete o que herdou.” Nenhuma assinatura. Mas Carla soube. O peso do papel era leve. O peso da escolha, não.

 

 Ela guardou o bilhete numa das garrafas mais antigas do pai e o escondeu no fundo da adega. Aquele não era um tempo de respostas fáceis. Mas era, talvez, o tempo de começar a perguntar.

 

 E assim, naquela terra fértil e silenciosa, entre parreirais que guardavam segredos, começava a se formar a história que o tempo, com todas as suas vontades, talvez não permitisse viver.

 

Continua...

 

 

A Sales
Enviado por A Sales em 20/05/2025
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