Capítulo 23
O Ciclo das Três Borboletas
Revelações gravadas em papel, tempo e fogo
Dias antes, quando Andressa questionara Matilde sobre Lázaro e se ele realmente fazia parte de tudo aquilo, Matilde limitou-se a dizer:
— Todas as respostas estão atrás daquela porta.
E foi assim que Andressa entrou. Seus passos soaram lentos no piso antigo do casarão. Havia um cheiro sutil de lavanda que parecia ter sido preservado por séculos, e a madeira da porta ainda rangia como se estivesse viva. Lá dentro, sentado à mesa sob uma luz tênue que vazava por vitrais circulares, estava Lázaro, o homem que prometera contar a história que ela buscava para escrever: a história da lenda de Ellenshade. O homem misterioso das cartas para a esposa morta.
Mas o que recebera, na época, foi apenas um caderno em branco, com um número escrito na última página: “333”. Agora, diante dele, tudo fazia sentido.
O silêncio entre os dois parecia carregar a densidade dos séculos.
— Então... todo esse tempo, era você? Perguntou Andressa, com a voz embargada, olhando para o homem que Matilde lhe revelara como sendo Escorpião.
Ela se lembrou da primeira vez que vestira o vestido ritualístico da Ordem da Coruja. Ainda na sala secreta da pousada, sentira a marca queimar no peito, como se seu passado viesse à tona num só momento. Agora, diante do homem que esteve sempre por trás das entrelinhas, as peças finalmente se encaixavam.
Lázaro não respondeu de imediato. Ele apenas estendeu a mão em direção à gaveta e retirou dois cadernos de aparência semelhante ao que havia dado a ela meses antes. Cada um deles exalava uma energia distinta, como se fossem recipientes vivos de memória.
— O que você viu em branco, disse ele, era só o começo. A revelação estava nos três.
Ele abriu o primeiro caderno, o da Sacerdotisa de Leão, diretamente no capítulo 3, página 3, terceiro parágrafo. Virou o caderno para Andressa, e ela viu.
A imagem mostrava uma pequena criança caída na beira de um píer de madeira, sendo resgatada por uma figura envolta em luz dourada. A criança, de cabelos castanho-claros, chorava nos braços da mulher com túnica de leão. Lázaro apontou a figura.
— Você tinha três anos. E essa... foi a primeira vez.
Andressa recuou meio passo. Seu coração acelerou. Na sua festa de 15 anos, seus pais haviam contado que ela escapara por milagre de cair no mar durante uma visitação de um navio no porto de sua cidade. Ela tinha segundo os pais três anos. Aquilo... era real. Agora ela se lembrava.
Lázaro passou então ao segundo caderno, o de Aurora. Abriu também no capítulo 3, página 3, terceiro parágrafo. A imagem era carregada de dor e mistério. Uma mulher estava desacordada dentro de um círculo de fogo de uma casa em chamas, mas o fogo não a queimava, apenas delimitavam ao seu redor. Ao lado dela, uma aura espectral, luminosa, que aos poucos se formava na imagem de uma outra mulher com vestes felinas e olhos de fogo, ela nitidamente não deixava as chamas queimar a mulher até o socorro chegar.
No canto inferior da página, uma inscrição discreta marcava: 3.3.1905.
Matilde apertou o ombro de Andressa.
— Andressa, a soma dos números dá 21. Você tinha exatamente essa idade quando isso aconteceu. E tudo... tudo no dia 3 de mesmo mês.
As mãos de Andressa tremiam. Sua mente queria negar, mas seu coração já aceitava.
Por fim, Lázaro abriu o terceiro caderno, o da Guardiã da ordem da Coruja. Mesmo capítulo, mesma página, mesmo parágrafo. A imagem era vívida. Uma mulher de cabelos soltos, prestes a ser atropelada numa madrugada chuvosa por um ônibus. Mas no exato momento que seria atingida, uma figura sombria com a forma de escorpião surgia e a salvou sumindo logo em seguida na escuridão. Na lateral do ônibus, um letreiro: Linha 33 = A.
Matilde mais uma vez fala pra Andressa. — Linha 33, a idade que você tinha, a pouco tempo atrás.
Matilde continua. — A letra “A”, seu nome. Andressa olha para Escorpião e toca na página com a ponta dos dedos. Lembrava da madrugada chuvosa em que em que quase perdera sua vida. Sabia que algo a tirou da linha do impacto, mas não viu nada do seu salvador a não ser uma imagem embaralhada de algo parecido um escorpião.
Ela ergueu os olhos para Lázaro, oscilando entre a emoção e a aceitação de um destino muito maior do que imaginara.
— Então, era você naquela madrugada.
Lázaro assentiu com um silêncio profundo, quase reverente.
Nesse instante, três borboletas, uma era Morpho azul, brilhante como lapis-lazúli. Outra, uma Vulcana, com tons alaranjados e pretos, vibrante e densa. A terceira, uma Pieris brassicae, quase translúcida, branca como véu de noiva que estiveram na sala com Lázaro e Andressa na volta do tumulo de Aurora, adentraram silenciosamente a sala. Voaram ao redor dos três cadernos. Lázaro colocou-os sobre a mesa, e as borboletas pousaram, cada uma, sobre um caderno.
A partir daí, o ar se encheu de energia. Como em um efeito de encantamento ancestral, as capas começaram a brilhar. O caderno da Sacerdotisa irradiava uma luz solar intensa, revelando inscrições antigas em ouro com a linhagem de Leão, nomes desaparecendo e surgindo, como se vivessem. O de Aurora adquiria um brilho rubro, e sua capa agora mostrava uma colina e um altar de pedra marcado pelo fogo: um aviso de sacrifício.
O caderno da guardiã, porém, era o mais fascinante. A capa parecia feita de vidro em movimento, com efeitos semelhantes ao bater de asas. Uma Coruja se formava no centro, e os traços se moldavam ao corpo de uma mulher com máscara, pisando sobre a sombra de um homem com vestes de morcego. Três borboletas, Uma era Morpho azul. Vulcana e Pieris brassicae, pairavam ao redor: uma à esquerda, outra à direita e uma sobre sua cabeça, como uma coroa viva. Ela estava no centro do destino.
E então, sem aviso, as páginas dos três cadernos desprenderam-se. As folhas giraram no ar como folhas de outono encantadas, em espiral ascendente. As borboletas voltaram a voar, cada uma conduzindo uma folha.
No ponto mais alto da sala, os papéis começaram a se fundir. Linhas de luz os entrelaçavam. Palavras arcaicas surgiam e desapareciam. Quando o brilho cessou, uma espada flutuava ali, média, elegante, e ao mesmo tempo feroz. O cabo era formado pelas três borboletas fundidas, e a lâmina era cravejada por inscrições antigas em latim zodíaco, encerrando a frase:
“In nocte, lux. In morte, vita. In silentio, ordinem.”
“Na noite, luz. Na morte, vida. No silêncio, ordem.”
Era a espada da nova Ordem. A confirmação de que um novo ciclo havia começado. Andressa, agora, compreendia tudo. Seu destino era antigo como as estrelas, e finalmente se tornava visível.
Continua...