Corvo do Silêncio
"Onde o mundo grita, o Corvo do Silêncio escreve, e no som das palavras, a alma desperta."
Capa Meu Diário Textos Áudios E-books Fotos Perfil Livros à Venda Livro de Visitas Contato
Textos

Capítulo 21

A Hora da Verdade

Quando o Destino Chama Pelo Nome da Guardiã

 

 

Ellenshade amanheceu como sempre amanhecia desde a morte de Aurora: envolta numa névoa tênue que jamais se dissipava por completo, como um véu de luto estendido sobre cada telhado, árvore e jardim da vila. O som dos pássaros era mais contido, e mesmo os sinos da igreja local pareciam soar com um som amortecido, como se respeitassem um silêncio imposto por um lamento ancestral. Havia um tipo de suspensão no ar, como se Ellenshade e Aurora tivessem sido criadas no mesmo plano astral, ligadas por raízes invisíveis. Quando ela partiu, a vila perdeu parte de si. Sua alma murchou. E com isso, jamais conseguiu recuperar sua beleza plena. As flores ainda cresciam, mas sem o mesmo viço. As crianças ainda brincavam, mas riam como se tivessem esquecido o motivo.

 

Naquela manhã, Lázaro conduziu Andressa por uma trilha estreita que subia a colina da colheita silenciosa. O céu estava opaco, as folhas dançavam sem vento, e as pedras do caminho pareciam mais lisas do que de costume. Lázaro caminhava em silêncio, com o semblante soturno, enquanto Andressa mantinha os olhos fixos na terra. Ela sentia algo mudar ao redor, mas ainda não compreendia. Quando chegaram ao túmulo de Aurora, Lázaro parou diante da lápide sem nome. Apenas o broto de lavanda indicava que ali havia algo sagrado.

 

— Você precisa ver com os próprios olhos. — disse ele.

 

Andressa ajoelhou-se. Tocou o solo com a palma da mão. No mesmo instante, uma onda de calor subiu pelo seu braço. Seu corpo estremeceu. Uma imagem fugidia se formou em sua mente: uma mulher de cabelos dourados e olhos cor de âmbar, sorrindo, com uma coruja pousada no ombro esquerdo. A imagem se dissolveu tão rapidamente quanto surgiu, mas deixou em Andressa a certeza do que ela sempre temera e nunca ousara aceitar.

 

Na descida, algo começou a acontecer. A névoa que envolvia Ellenshade se dissipava a cada passo. Os galhos antes secos floresciam, as árvores frutificavam com uma rapidez incomum. Pássaros surgiam entre as copas, e crianças corriam pelas ruas empedradas, como se despertassem de um longo sono. A luz do sol, antes difusa, atravessava as janelas com força, e os jardins explodiam em cores. O céu clareava num azul profundo. Era como se a Sacerdotisa de Leão, de algum lugar além deste mundo, estivesse confirmando sua escolha: Andressa era a mulher da profecia. Aquela com a marca da coruja. Aquela que nascera sob proteção e que agora, com seus 36 anos, estava pronta.

 

Enquanto isso, a centenas de quilômetros dali, sob um céu sem estrelas, Capricórnio cruzava os portões antigos de uma antiga Abadia dos Silvios cuja entrada só seria possível ao resolver os enigmas inscritos em seus vitrais. Era uma estrutura escavada na rocha viva, coberta por líquens e runas em línguas mortas. O local ficava nos Montes Rhodopes, na fronteira entre Bulgária e Grécia, uma região onde o tempo parecia ter desistido de passar. Ele desceu com cuidado as escadas úmidas, guiado apenas por tochas verdes que se acendiam uma a uma com sua presença. Estava perto.

 

Ao chegar à primeira câmara, viu uma parede coberta por símbolos em espiral, entrelaçados com a constelação de Escorpião. No centro, um entalhe de pedra em forma de espelho vazio. Abaixo, uma inscrição em latim arcaico: "Solum veritas videre potest", apenas a verdade pode ver.

 

— Maldito Gêmeos... ele tinha razão, rosnou Capricórnio, franzindo o cenho.

 

A parede reagiu à sua presença. Um sussurro soprou no ar. Capricórnio se aproximou do espelho de pedra. De repente, uma névoa começou a se formar ali dentro, como se o espelho fosse líquido. Sua própria imagem não era refletida. Em vez disso, a figura de Escorpião surgiu ali, como uma memória viva, dizendo com ironia:

 

— Se estás aqui, é porque me subestimas... outra vez.

 

Capricórnio cerrou os punhos. Aquilo era mais que uma mensagem, era um desafio. Então, ao tocar o símbolo da constelação, o espelho se rachou e abriu uma passagem lateral oculta. Ele a atravessou sem hesitar.

 

O segundo obstáculo era uma sala circular com nove arcos. O teto era abobadado e no centro havia um altar em pedra bruta. Ao redor, nove estátuas, cada uma representando um signo. Mas uma delas, a do Escorpião, estava de costas. No altar, um enigma esculpido:

 

“Doze somos, e doze fomos. Mas o traidor está de pé. Se quiseres seguir, faça-o ajoelhar.”

 

Capricórnio compreendeu rapidamente. Ele precisava girar a estátua de Escorpião. Mas ao se aproximar e tocar a escultura, uma agulha fina perfurou sua palma. O sangue escorreu pelo altar. Um brilho azul iluminou a sala, e as outras estátuas começaram a se mover lentamente, voltando seus olhos para ele. Cada uma carregava uma arma: lâminas, lanças, bastões. Uma delas, Áries, ergueu a espada. Ele tinha segundos para completar o gesto. Ajoelhou-se diante do Escorpião. A sala cessou seu movimento. A porta oculta se abriu. Ele respirou fundo. — Áries seu miserável, ainda bem que você está do meu lado. Ele murmurou pra se mesmo. E seguia em frente.

 

O terceiro desafio era mais sutil. Um corredor estreito, cheio de espelhos. Mas cada espelho refletia não a imagem atual, mas diferentes versões de si mesmo ao longo das eras. Como general, como monge, como criança. Um deles mostrava Capricórnio com olhos vazios e coroa de ossos. Ele hesitou. A cada passo, vozes surgiam:

 

— Não és mais aquele que usurpou a Ordem.

 

— És apenas a sobra do que Escorpião ousou recusar.

 

— A marca da Coruja te vencerá…

 

Ele fechou os olhos e atravessou, quebrando cada espelho com a adaga curva que trazia à cintura. Estilhaços caíam como lágrimas de cristal. Ao final do corredor, uma escada em caracol levava ao último desafio.

 

A quarta prova: uma sala completamente escura. No centro, uma esfera flutuante envolta em correntes. Era a “Esfera do Juízo”, forjada por Escorpião em sua última viagem à Índia, no século XIX. Nela, estavam codificadas as palavras que apenas os justos podiam pronunciar. Capricórnio tentou aproximar-se, mas a esfera lançou uma onda de energia que o empurrou contra a parede. Ele sangrou pela boca. Retirou do pescoço um medalhão antigo: o símbolo da Ordem original. Colocou-o diante da esfera e murmurou as palavras ensinadas por Libra antes de sua deserção:

 

— Lux inter umbras lucet.

 

A esfera aceitou o sacrifício. As correntes se romperam e a relíquia se revelou.

 

Capricórnio avançou. Na base do altar de mármore negro, envolto em linho antigo, repousava o Vértice de Ethers. A luz que saía dele era pulsante e dourada, como o coração de uma estrela capturado em cristal. Ele o segurou com reverência. Um sorriso frio se espalhou em seu rosto.

 

— Meu irmão. O tempo te deixou fraco. Eu esperava mais de ti. Murmurou.

 

Virou-se. A passagem se fechou atrás de si. Ele havia vencido os quatro obstáculos. Estava pronto. Faltava apenas um dia para a Convergência da Tríade Celeste. Com a relíquia em mãos, acreditava que nada mais impediria seu domínio sobre os mundos dos vivos e dos mortos. Mas algo dentro dele ainda tremia, uma sombra que não vinha do exterior, mas de dentro do próprio coração.

 

Continua...

 

Corvo do Silêncio
Enviado por Corvo do Silêncio em 10/07/2025
Alterado em 03/08/2025
Copyright © 2025. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.
Comentários