Cheiro de Terra Molhada
Trinta e Um Dias de Alma Lavada no Campo
Eu não sei ao certo em que dia nasceu essa saudade tão bonita que sinto da vida no campo. Talvez tenha sido numa manhã chuvosa, dessas em que a gente escuta o barulho da água escorrendo pelas calhas e sente aquele aroma forte de terra molhada subindo do chão. Ou talvez tenha sido ao ouvir o canto distante de um galo e perceber que, mesmo longe da roça, ela ainda canta dentro de mim.
Mas o que eu sei, com toda certeza, é que tão logo eu encerre o conto "O Coração Queimado de Lázaro", estarei de volta à terra que me pariu em alma: o campo. E é pra lá que eu quero te levar comigo, leitor amigo, poeta do Recanto das Letras e companheiro de tantas palavras. Não precisa ter vivido lá, não precisa ter pisado no barro nem ter colhido café com as mãos calejadas. Basta ter ouvido alguém que um dia contou. Basta ter sentido esse chamado doce que vem de dentro e cheira a café coado na hora e pão feito na lenha.
O nome do novo conto será "Cheiro de Terra Molhada", e nele trarei trinta e um dias de histórias, causos, lembranças e encantos. Dias que serão como janelas abertas para a vida no campo, vida simples, mas cheia de grandeza. São histórias vividas, outras contadas por minha avó à beira do fogão à lenha enquanto mexia o tacho de doce de leite com uma colher de pau enorme. Histórias que nasceram no terreiro de milho, cresceram entre as galinhas e bois, e dormiram ao som dos grilos e da coruja solitária no alto da paineira.
Acordar no campo é um tipo de milagre diário. O céu começa a clarear devagarinho, como quem espreguiça os braços depois de um longo sono. Antes mesmo do sol aparecer por inteiro, a névoa cobre o chão como um véu tímido de noiva, e os galos, ah, os galos! já anunciam a alvorada com sua cantoria destemida. O Galo Bernardo, coitado, até tenta escapar da chuva, pois não é muito fã de água, mas quando ela resolve cair, ele se esconde debaixo do curral e deixa o aviso do dia por conta dos passarinhos.
Lá no fundo, a cerca de madeira ainda carrega o orvalho da madrugada. É nela que o Bode Chico costuma se esfregar. Bonito, sim, com aquele pelo lustroso, os olhos amarelos vivos, e um ar de quem não deve nada a ninguém. Mas é bom que se saiba: o que ele tem de belo, tem de traquino. Basta a gente dar as costas, e ele corre com aquelas patas finas e dá-lhe uma cabeçada no bumbum. Já derrubou meu tio, assustou minha prima, e comigo? Bem, comigo ele tem uma rixa antiga, desde o dia em que o prendi no galinheiro por engano, estava chovendo e ele não perdoa. Mas faz parte da convivência, o campo ensina que todo bicho tem sua alma, seu gênio e seu tempo.
Na cozinha da casa de pau-a-pique, o fogo já está aceso desde a hora em que a estrela-d’alva piscou pela última vez no céu. A lenha estala alegremente, e o cheiro do café moído na hora invade cada canto. É um cheiro forte, de raiz, que atravessa a alma, desses que você não encontra na cidade grande. A chaleira canta sua música aguda, enquanto a manteiga derrete devagar no pão de milho recém-tirado do forno. Ao lado do fogão, ela, a musa italiana Lina, a dona Giuliana Moretti, cozinha feijão tropeiro, e entre uma mexida e outra, conta sobre os tempos de seca, das festas de colheita, dos bois mansos que choravam quando iam para o abate. Ela um fenômeno e todos os peões a respeitam como uma mãe. A mãe Lina.
No campo, a vida pulsa de um jeito diferente. O chão é vermelho, coberto de folhas secas, pequenas flores do mato e pegadas dos animais da noite. As galinhas cacarejam como se discutissem política, e os pintinhos correm atrás delas como crianças mimadas. O velho Carijó ainda cisca na sombra da jabuticabeira, e o porco Chiquinho grunhe no chiqueiro como se tivesse algo importante a dizer. É um espetáculo.
E os cheiros! Ah, os cheiros! O campo tem mil deles, o cheiro do capim cortado ao meio-dia, quando o sol castiga o rosto da gente; o cheiro de terra molhada após a primeira chuva da estação, que sobe como um incenso de saudade; o cheiro do curral, onde os bezerros mamam nas vacas com uma sede que parece não acabar mais; o cheiro do angu de fubá com quiabo, servido em prato fundo, com colher de pau.
À tardinha, quando o céu se pinta de rosa e laranja, e os pássaros fazem seu último alvoroço antes do silêncio da noite, a gente se senta na varanda. A cadeira de palha range de leve, como se estivesse contando seus próprios anos. O vento vem cheirando a fruta madura e balança o coqueiro com ternura. As cigarras cantam alto e as primeiras estrelas surgem no céu, tímidas, como crianças em festa.
É nessa hora que a memória faz sua colheita mais bonita. Lembro das vezes em que, menino ainda, corria descalço pelo terreiro, chutando o pó da estrada e gritando “boi!” como se fosse um vaqueiro de verdade. Lembro das histórias contadas à luz do lampião, das modas de viola que faziam meu suspirar suspirar, e do meu tio, que dormia com o chapéu cobrindo o rosto, mas sempre acordava quando falavam de boi brabo ou de mula teimosa.
E é por isso, meus amigos, que esse novo conto nasceu.
Porque a vida no campo não é só um lugar, é um tempo. Um tempo onde o relógio é o galo, o calendário é a chuva, e o silêncio é cheio de som. É uma escola sem paredes, onde a lição é diária e o caderno é o chão. É uma forma de estar no mundo com os pés na terra e o coração no céu.
Em "Cheiro de Terra Molhada", vou te levar comigo por trinta e um dias, um por um. Vamos caminhar por trilhas de terra batida, colher laranja do pé, conversar com o velho Januário, que sabe tudo das estrelas e jura que conversava com lobisomem nas noites de lua cheia. Vamos acompanhar o parto da vaca Mimosa, rir com as armações do Bode Chico, e até preparar um doce de banana no tacho de cobre enquanto a chuva cai lá fora.
Não te prometo luxo, nem grandes surpresas, mas te prometo verdade. Prometo chão, mato, fogão e alma. Prometo contar do jeito mais bonito que eu souber, com as palavras que crescem dentro de mim desde os tempos em que a vida era mais lenta, mais feita à mão, e a gente entendia que o tempo das coisas é o tempo do coração.
E, por fim, deixo aqui um poema que é convite, é saudade, é porta aberta:
Por entre a cerca de arame e flor de jurubeba,
Vem ver o mundo do campo, sentar na pedra e prosear.
Tem cheiro de terra molhada, tem céu que nunca acaba,
Tem galinha ciscando sol, e milho pra gente assar.
Não precisa trazer bagagem, nem relógio, nem razão,
Só o peito aberto e calmo pra ouvir a canção.
Lá o tempo é mais manso, o barulho é do bem,
Tem silêncio que abraça, e tem manhã que vem.
E se o Bode Chico vier, só desvie o bumbum,
Mas aceite a festa do campo com gosto de pão e rum.
Um grande abraço,
e que o campo te receba com o coração aberto.
"Respeitar uma mulher não deve jamais depender do que ela veste, mas do que ela é: um ser humano completo, com alma, história, força e dignidade. O valor de uma mulher não está na medida das suas roupas, mas na inteireza do seu ser. Quem só enxerga pele, não conhece essência, e quem precisa de recato para oferecer respeito, ainda não aprendeu a ser gente."