No coração do interior paulista, onde os ventos percorriam os vales com cheiro de terra fértil e esperança, existiu uma mulher cujo destino se enraizou entre parreirais e segredos. Carla Mancini não foi apenas herdeira de um dos maiores vinhedos de Jundiaí, foi o espírito corajoso de uma época que raramente concedia liberdade às mulheres. Sua história, tão marcada pelas perdas quanto pela coragem de enfrentar verdades incômodas, revela não apenas o retrato de uma vida, mas também o pulsar de uma cidade que florescia entre a tradição e o progresso.
A narrativa que percorremos se estende desde os anos finais do século XIX até o alvorecer da década de 1920, num Brasil ainda rural, moldado por ciclos agrícolas e famílias patriarcais que erguiam seus impérios com suor e alianças de conveniência. Jundiaí, localizada entre Campinas e São Paulo, era conhecida como a “Cidade das Uvas”, título não dado ao acaso. Os parreirais se espalhavam pelas encostas, sustentados pelo trabalho incansável de imigrantes italianos que haviam chegado fugindo das dificuldades na Europa, mas também sonhando com um novo recomeço sob o sol do hemisfério sul.
Foi nesse cenário que Carla nasceu, num casarão de muros altos e janelas com venezianas verdes, filha do senhor Salvatore Mancini, homem austero e respeitado, e da doce Joana, ou assim ela acreditava até que a verdade se impôs como um raio no céu claro. A infância foi breve e marcada pelo luto: aos quinze anos perdeu os pais num trágico acidente, que muitos chamaram de maldição, outros de consequência da rivalidade silenciosa entre os Mancini e os Costa, famílias que dividiam o comércio e o controle da produção de uvas na região.
Quem a sustentou desde então foi a avó, Dona Antonietta, mulher de fibra e palavras duras, mas de coração largo. Com ela, Carla aprendeu tudo que havia para saber sobre enxertia, poda, colheita e comércio. Aprendeu também sobre silêncio, sobre paciência, sobre o que se pode suportar quando se carrega nos ombros o nome de uma família inteira. A cidade via nela uma moça bonita, ousada para o tempo em que vivia, que usava vestidos de tecido fino e desafiava as convenções ao tratar de negócios com homens mais velhos, sem abaixar a cabeça.
Mas por trás da postura decidida e da fala firme, havia uma menina que amadureceu cedo demais, moldada pela dor e pela necessidade de sobreviver num mundo que pouco oferecia às mulheres. Carla era o retrato do esforço coletivo de centenas de filhas, mães e avós que sustentaram a economia agrícola do interior, mesmo sem terem seus nomes impressos nos jornais ou registrados nos livros da história oficial.
Entre as estacas dos parreirais, entre os grãos de terra úmida e as folhas que dançavam no vento, ergueu-se a alma de Carla, e com ela, a memória de sua linhagem. O vinho jundiaiense era conhecido em toda a província, transportado em carroças, vendido em tonéis, servido nas festas da colônia italiana e nas celebrações religiosas. Não era apenas comércio: era identidade, era cultura, era a alma de um povo que se reinventava a cada colheita.
Os anos entre 1890 e 1923 foram de intensas transformações. O Brasil se urbanizava aos poucos, o trem cortava o vale e trazia notícias do mundo, as primeiras fábricas surgiam nos arredores e os jovens começavam a sonhar com a cidade grande. Ainda assim, o campo persistia com sua própria cadência, ditada pelo sol, pela chuva, pela fertilidade da terra e pelo trabalho de mãos calejadas.
Foi nesse compasso que Carla viveu. Amou em silêncio, descobriu verdades enterradas pelo tempo, enfrentou traições dentro da própria família e manteve-se de pé mesmo quando tudo parecia ruir. Descobrir que sua verdadeira mãe era Lilian D. Costa, pertencente à família rival, abalou seus alicerces, mas não destruiu sua essência. Em meio ao incêndio de seu armazém, às tramas de Ernesto, seu tio ( ou que ela acreditou ser) de sangue e inimigo por escolha, e à dor de cada perda, ela escolheu reconstruir, como tantas mulheres de sua época faziam, sem glória, mas com dignidade.
Seus olhos profundos carregavam a memória de Antonietta, a força de Salvatore e a doçura oculta de Joana. Sua trajetória foi feita de silêncios pesados, de promessas esquecidas, de amores não vividos e de uma terra que, mesmo quando negava tudo, ainda lhe devolvia esperança em forma de uva madura.
Hoje, ao olhar para trás, a imagem que resta de Carla é como a das tardes douradas nos campos de Jundiaí, quando o sol, ao se deitar sobre os parreirais, lançava sua luz morna sobre uma terra de histórias escondidas. Seu nome talvez não esteja gravado nas placas das ruas ou nas paredes dos museus, mas vive no sopro do vento que balança os ramos, no aroma do vinho envelhecido e no silêncio que ecoa nas velhas casas do bairro da Colônia, onde tudo começou.
E assim termina a crônica de Carla Mancini: uma mulher forjada na dor, elevada pela coragem e eternizada nas entrelinhas da história de uma cidade que, entre parreirais e amores proibidos, viveu sobre segredos como quem cultiva o tempo, lentamente, com sabedoria, à espera do ponto exato da maturação.
O meu muito Obrigado!!