A manhã nasceu lentamente sobre os campos de Cidade das Uvas, como se também despertasse das dores e revelações da noite anterior. O céu, ainda em tons de rosa e dourado, anunciava um dia de sol claro. Os pássaros, sabiás, canários e bem-te-vis, cantavam alto entre as ramagens dos parreirais, como se celebrassem a colheita da verdade que enfim se fazia. A brisa leve passava por entre as folhas das videiras, trazendo o cheiro da terra úmida e das uvas maduras, as poucas que ainda tinha.
Jandira entrou no quarto com passos firmes, mas silenciosos. Como era de seu costume, foi até as janelas de madeira trabalhada e as abriu, deixando que a luz dourada da manhã invadisse o aposento. O cheiro fresco da alvorada misturava-se com o perfume do café que ela levava numa bandeja esmaltada com flores desbotadas.
— Acorda, sinhá... disse, com suavidade e firmeza. Aqui está um café bem reforçado.
Carla ainda estava deitada, os cabelos soltos repousando sobre o travesseiro de linho. O lençol branco subia até sua cintura, revelando a camisola de renda clara, quase transparente, que deixava visível o contorno do corpo firme e esguio. O cordão em forma de coração, herdado da avó, pendia entre os seios, como um símbolo silencioso do passado que ela ainda tentava entender.
Levantou-se com dignidade, mesmo diante do peso que ainda carregava no peito. Algumas horas depois, já com os cabelos soltos ao vento e um vestido claro justo na cintura, caminhava entre os parreirais com Jandira ao seu lado. O sol subia firme, dourando os cachos de uvas rubi, e o canto dos galos ainda ecoava ao longe.
— Jandira... disse Carla, olhando entre os ramos como quem busca respostas na natureza.
— Me diga... André... ele é meu irmão?
Jandira hesitou, depois sorriu brevemente, mas logo se conteve.
— Não, sinhá. Não é.
Aquelas palavras foram como a brisa fresca que atravessa a pele num dia quente. Carla, por um instante, sentiu o corpo leve, como se um peso imenso lhe deixasse os ombros. Não conseguiu falar. Apenas respirou fundo, e os olhos brilharam, não de lágrimas, mas de alívio.
Voltaram ao casarão. Jandira observava sua sinhá com apreensão. Percebia mudanças sutis no modo como ela andava, como olhava os objetos da casa. Sua experiência lhe dizia que, quando tudo se resolve, outras verdades começam a nascer.
Na sala de janelas altas, Carla encontrou Pereira parado, como sempre, ao lado da esquadria. Olhava o horizonte com a atenção de um cão de guarda.
— Pereira, você não estava no café... O que houve?
Ele virou-se devagar. Iria dizer “minha filha”, mas se conteve. Limpou a garganta com discrição.
— Sinhá Carla... eu ia lhe perguntar... o que quer que façamos com Ernesto...
Ela estacou. O nome de Ernesto voltava à tona, como um cisco que insiste em arranhar a memória.
— Quando Jandira falou quem era minha mãe... começou a dizer, mas foi interrompida.
Pereira desviou o olhar. Por um momento, o homem que sempre resolvera tudo na força mostrava vulnerabilidade.
— Tem algo que nem Jandira sabe. Nem mesmo dona Antonietta soube... disse com a voz trêmula.
O silêncio caiu como um trovão. Carla ficou imóvel. Os olhos se estreitaram. O rosto perdeu a cor.
— Pereira... do que está falando?
Ele segurava o chapéu com força entre as mãos calejadas. A cada palavra, parecia cavar o próprio coração.
— Quando seu pai, Salvatore, ainda era um rapaz, chegou com a família pra essas bandas... os Costas estavam querendo tomar tudo... ele fez uma pausa. Certa vez, acusaram ele de roubar uvas. Iam matá-lo. Mas vi nos olhos dele que não era ladrão. Eu matei os homens do velho Pai do Fortunato, e eu disse que que o garoto não estava só, ouve luta e os homens dele morreram. Eu me cortei pra provar que a história era verdade. O velho Costa acreditou.
Carla o ouvia, sentada, sem piscar.
— O tempo passou, eu engravidei uma mulher. Se os Costas descobrissem, eles me mataria. Fui até Salvatore e contei. Ele prometeu me ajudar. Falou com dona Antonietta e no dia seguinte ela fiz um acordo com os Costas. A criança, você, nasceria como filha deles, pra evitar mais sangue.
Carla se levantou.
— Eu sei desse acordo. Jandira me contou...
— Sim... mas nem sua avó sabia de tudo. Aqui, disse, tirando uma carta do paletó. Salvatore me deu isso antes de morrer. Pediu que eu só entregasse quando tudo viesse à tona.
Com as mãos trêmulas, Carla abriu a carta. O papel já amarelado trazia a letra firme de Salvatore:
Minha filha,
Se esta carta chegou a suas mãos é porque a verdade já encontrou o caminho até você. Pereira sempre foi meu braço direito, meu irmão de alma. Salvou minha vida quando eu ainda não conhecia os perigos deste lugar. Devo a ele mais do que posso contar.
O destino, imprevisível como a uva que nasce entre espinhos, o levou a conhecer Lilian. O fruto desse amor proibido é você, Carla. Tua vida corria perigo, e por isso, protegemos você com um véu de mentiras bem-intencionadas. Joana te amou como filha, e sua avó, como neta do sangue. Mas sua verdade sempre foi maior que o silêncio.
No armazém velho, próximo ao poço, há uma bolsa com seu registro verdadeiro, feito pelo padre Antonio na capela da cidade. Nele está escrito o que teu coração já começa a entender: Pereira e Lilian são teus pais de sangue. Cuida dele como ele cuidou de mim e, mais que tudo, cuidou de você. Tudo que herda agora é teu por direito e por destino.
Ame e seja feliz,
Salvatore Mancini
As lágrimas de Carla vieram lentas, como a chuva que rega a terra antes da colheita. Pressionou a carta contra o peito e caiu sentada na cadeira. Por um instante, todo o casarão pareceu respirar com ela. Cada parede, cada móvel, cada fotografia antiga, todos sabiam, todos esperaram por aquele momento.
Pereira deixou a sala em silêncio. Na cozinha, encontrou Jandira.
— Fui falar com o moço André, disse. Pedi que não desistisse de Carla. E que você... que você iria ajuda eles se unirem.
Jandira não respondeu. Apenas assentiu, e um sorriso sereno lhe cruzou o rosto.
Lá fora, o sol já subia alto no céu. Os parreirais pareciam mais vivos que nunca, com os galhos carregados e os aromas pulsando no ar. Carla, com a carta no colo e o coração apertado, sentia-se inteira e partida ao mesmo tempo. O passado deixara marcas, mas agora, enfim, ela podia seguir adiante, não mais como uma herdeira dos Mancini ou inimiga dos Costas, mas como a mulher que conheceu suas raízes, e que estava pronta para replantá-las com verdade.
Carla chama Jandira e lhe pedi que reúna todos a frente do casarão... minutos depois. Estão aqui sinhá Carla.
— E pereira, não o vejo Jandira.
— Sinhá, Sebastião não encontrou ele no quarto. Só tinha esta carta para a sinhazinha.
Fim
(...)
Dez anos se passarão e Carla chega a Itália. Pegando os documentos no aeroporto ele ver o bilhete que André mandou e que ela nunca abriu.