Nos recantos da verdade enterrada, Carla descobre que o sangue pode unir tanto quanto ferir. E nem sempre a origem é o que parece ser.
A sala principal do casarão dos Mancini estava mergulhada em penumbra. A única luz vinha do abajur de base de bronze, forrado por tecido amarelado, que lançava sombras vacilantes sobre as paredes de taipa, decoradas com retratos antigos e cruzes de madeira escura. O ar trazia o cheiro morno de chá de melissa com flor de laranjeira, o mesmo que Carla sempre tomava desde menina, em tempos de aflição, e o aroma suave da cera de abelha que Maria das Dores usava nos móveis.
Carla estava sentada na cadeira de encosto alto, os braços apoiados nos joelhos, as mãos entrelaçadas e os olhos fixos no vazio. O rosto pálido contrastava com o cabelo negro preso às pressas. Havia um silêncio espesso no ambiente, rompido apenas pelo ranger ocasional da madeira sob os pés de Jandira, que se aproximava com passos lentos, vestida com um vestido marrom desbotado e o avental encardido de um dia exaustivo.
— Tudo começou quando seu avô Vittorio Mancini morreu, disse Jandira, a voz um pouco rouca, mas firme, como quem sabe que precisa falar de uma vez. — Foi logo que chegaram da Itália… Vieram pra essas bandas. Seu pai era menino novo, seu tio, o Ernesto, mais novo ainda. Foi quando ele… seu pai, o senhor Salvatore, conheceu sua mãe...
— Sim, Jandira, essa história eu sei, interrompeu Carla, sem desviar o olhar. — Ele casou com minha mãe, Joana, e um ano depois eu nasci.
Jandira a fitou, e pela primeira vez naquela noite, Carla percebeu um pesar nos olhos da velha criada. Era um olhar que carregava mais que cansaço. Carregava verdades que o tempo não havia permitido brotar.
— Não, sinhá. Essa é a história que lhe contaram... pra esconder a verdade.
Carla ergueu os olhos num susto. Seu coração deu um salto que quase a fez perder o fôlego.
— Como assim, esconder?
— Sua mãe... sua verdadeira mãe... chama-se Lilian D. Costa.
As palavras caíram como um raio. Carla sentiu a pressão no peito, como se faltasse ar. Ficou ereta na cadeira, os olhos arregalados, buscando nas feições de Jandira qualquer sinal de mentira, de engano, de erro.
— Lilian? Costa? murmurou, engolindo em seco.
Jandira fez silêncio. Era preciso deixar que a sinhá assimilasse aquilo. Por um longo momento, Carla permaneceu imóvel, como se o mundo ao seu redor tivesse parado.
— Então… quem é Joana? Perguntou, por fim, revirando papéis na gaveta de um antigo móvel entalhado por artesãos italianos, que outrora pertencera à avó.
— Joana foi a mulher que seu pai casou depois... quando teve de se separar de Lilian pra evitar outra briga com os Costa. A primeira já tinha levado seu avô Vittorio. E o senhor Salvatore não podia começar outra briga...
— E onde está Lilian, Jandira? A voz de Carla saiu mais dura do que ela queria, como quem exige saber o paradeiro da própria alma.
— Tudo que sei é o que dona Antonietta me dizia. Ela soube que Lilian tava grávida... e tinha certeza que a criança era do filho. Então, numa noite, foi com Silvestre que era o capaz da época às escondidas falar com o velho Fortunato Costa. Ele também era jovem, e já tinha perdido os pais cedo. Fizeram um acordo.
— Que tipo de acordo?
— Se ele permitisse que Lilian tivesse a criança... e entregasse pra ela... dona Antonietta garantiria que, enquanto vivesse, não haveria mais brigas entre os Mancini e os Costa. Um pacto silencioso, pelo bem das terras, dos nomes... e da paz.
Enquanto Jandira falava, Carla revirava uma pasta esquecida dentro da escrivaninha. E ali, entre recibos antigos e correspondências emboloradas, encontrou um papel dobrado e marcado pelo tempo.
Abriu com as mãos trêmulas e leu, em caligrafia firme:
“Em nome da estabilidade entre as famílias Mancini e Costa, firmamos que…”
— Aqui, Jandira... disse Carla, mostrando o documento com as assinaturas de Fortunato e Antonietta.
— É verdade. Está tudo aqui...
— Depois que a sinhá nasceu, sua mãe lhe trouxe até aqui. Deixou-a com sua avó... e sumiu. Ninguém nunca mais soube pra onde ela foi. Sua avó dizia que Lilian contou que não ficaria mais na casa dos Costa. Dona Antonietta, temendo o pior, preparou tudo e a mandou pra casa da irmã, na Itália. E é onde ela deve estar até hoje...
Carla deixou cair uma lágrima, única e silenciosa, que percorreu seu rosto com a dignidade de quem não desmorona, mas sente.
— Por isso minha avó ia tanto à Itália... por isso sempre me dizia que um dia, se eu precisasse ver a verdade, eu teria que ir lá. Eu achava que era só saudade dos vinhedos...
— Talvez fosse, sinhá... saudade de tudo que perdeu.
Carla se levantou e foi até a estante, pegou a moldura com a foto de Antonietta e outra de uma mulher jovem, de feições delicadas e olhar semelhante ao seu.
— Essa é Lilian, não é? perguntou com a voz embargada.
— É sim... sua mãe.
— Mas então... Carla se voltou para Jandira, confusa, se Ernesto é irmão do meu pai... por que ele faria tudo isso contra mim?
Jandira hesitou, depois respondeu devagar:
— Por vingança.
Carla franziu a testa. A palavra soava estranha ali, dentro daquele drama familiar. Mas antes que pudesse questionar, Jandira explicou:
— Ernesto gostava da irmã mais nova de Lilian... e queria se casar com ela. Mas seu pai sabia do acordo de paz entre as famílias. E ele não aceitou. Nem dona Antonietta. Disseram que, se ele insistisse, seria expulso sem herança, sem nome, sem nada.
— E ele jurou se vingar... murmurou Carla.
— Sim, sinhá. E esperou. O tempo passou, ele jurou lealdade aos Costas, se manteve contido... até a morte de sua avó. Com ela, morreu o acordo.
O silêncio voltou a se fazer. O velho relógio da parede, herança de Gênova, marcava meia-noite e quarenta e cinco.
Carla se sentia exausta. Como se todo o peso do mundo estivesse sobre seus ombros. Caminhou até a janela. Lá fora, a noite era densa, salpicada de estrelas. Uma brisa leve movia as cortinas de renda feitas à mão. As luzes das lamparinas do terreiro tremeluziam ao longe. E um cão uivava solitário em alguma casa vizinha próxima.
— E André, Jandira...? perguntou de repente, como quem lembra de um nome que arde no peito. Se eu sou filha de Lilian... então...
Ela se sentou, as pernas falhando, e murmurou quase sem voz:
— Então ele é meu irmão?
Jandira se aproximou devagar e segurou suas mãos. Com um olhar sereno, mas firme, respondeu:
— Sinhá... precisa de um banho e de descanso. Amanhã eu lhe conto sobre o moço André. Hoje... a senhora precisa dormir.
Carla não queria dormir. Queria respostas. Queria o passado reescrito. Queria fugir de tudo. Mas o corpo... o corpo já não obedecia mais.
A velha criada a ajudou a levantar e a levou até seu quarto, cujas janelas davam para os parreirais escurecidos. Ao se deitar, Carla ainda escutava, ao longe, o som de uma noite que parecia nunca terminar.
Lá fora, o céu clareava vagamente no horizonte, ainda que fosse apenas uma da manhã.
E a verdade, finalmente, começava a nascer.
------------------------------------------------------------------
No próximo capitulo apenas o fim.