Ainda era cedo da noite quando o som das patas do cavalo de Fortunato Costa se perdeu entre a mata silenciosa da propriedade dos Mancini. As estrelas mal tinham tomado o céu quando Carla ainda permanecia imóvel, de pé diante da porta principal do casarão, com os olhos fixos no vazio. A poeira levantada pelo velho Costa já havia baixado, mas as palavras que ele deixara pairavam como nuvens pesadas em sua mente.
Ernesto. Seu tio.
A revelação cortava mais fundo do que o próprio incêndio, mais cruel que qualquer sabotagem. Aquele que destruíra seu armazém, que espalhara o terror entre seus trabalhadores e quase arruinara o legado de sua família... era de seu próprio sangue. Tio. Irmão de seu pai.
Jandira aproximou-se em silêncio, respeitando a imobilidade da sinhá. Não ousava dizer palavra; apenas tocou com cuidado o braço da jovem mulher, enquanto Pereira se mantinha à distância, de chapéu nas mãos, a cabeça baixa em respeito e dor. Depois de alguns instantes, com gestos suaves, Jandira e ele conseguiram conduzi-la de volta à casa principal, cujas paredes de taipa de pilão e janelas de venezianas abertas ainda guardavam o cheiro do dia, terra quente, vinho recém-amassado e alfazema.
Carla caminhava como quem arrastava correntes invisíveis, os ombros tensos, o semblante pálido. Os candelabros a óleo lançavam sombras nas paredes do salão e faziam sua silhueta parecer ainda mais cansada, mais distante. A sala grande, com móveis escuros de madeira nobre e retratos antigos dos Mancini nas paredes, parecia observá-la em silêncio, julgando-a, talvez, por ter trazido um Costa até ali.
— Maria das Dores, prepare o chá de melissa com flor de laranjeira... — pediu Jandira à criada, ao notar que a sinhá tremia levemente.
Era o mesmo chá que Carla tomava desde menina, quando sofria de angústia ou pesadelos. A avó Antonietta jurava que aquela infusão era capaz de acalmar até o coração mais atormentado. Talvez por isso, quando o cheiro adocicado da bebida começou a se espalhar pela casa, Carla finalmente se sentou, com as mãos no colo, ainda sem dizer uma palavra.
Seu olhar vagueava entre as paredes, como se procurasse respostas nos olhos pintados da avó no retrato emoldurado acima da lareira. Por que me esconderam a verdade? Por que ninguém jamais mencionou que eu tinha um tio? E como um Mancini se misturara à linhagem dos Costas?
As perguntas fervilhavam como brasas de um incêndio que não cessava. O silêncio pesava entre os três como chumbo, até que Carla enfim murmurou, num fio de voz:
— Ele é irmão do meu pai... E ninguém nunca disse nada...
Jandira pousou uma das mãos sobre o ombro dela.
— Algumas verdades, sinhá... só vêm quando a dor está pronta pra recebê-las.
Lá fora, o vento soprava entre os parreirais. Lá dentro, Carla, ainda trêmula, dava o primeiro gole no chá que agora lhe queimava mais a alma do que a boca.
Pereira caminhava firme pelos fundos da propriedade, os passos pesados como os pensamentos que lhe ocupavam a mente. A luz de uma lamparina oscilava em sua mão, iluminando o rosto suado e os sulcos fundos de expressão cansada. Ao chegar ao galpão improvisado onde Ernesto estava detido desde a tarde, parou diante dele e o observou em silêncio. Não havia ódio em seus olhos, mas sim um amargo desalento.
Ernesto permanecia sentado, o rosto marcado por um leve corte na sobrancelha e o orgulho em frangalhos. Não levantou os olhos quando sentiu a presença de Pereira, como se evitasse encarar a sombra viva de tudo o que destruíra. Pereira o olhou com pesar, não por ele ter se tornado um Costa, tampouco por ser tio de Carla. O que o corroía era a dor que aquele homem impusera à jovem a quem ele viu crescer, uma dor que nenhuma corrente seria capaz de prender.
— Sebastião, chamou, sem tirar os olhos do prisioneiro.
O capataz surgiu logo adiante, vindo do escuro com uma corda no ombro e uma chave na mão.
— Leve esse aí até aquele quarto velho, perto do cocho. Prepare uma daquelas camas que só usamos pra tropeiros de passagem. Dê-lhe um lençol e comida... pão duro, água, o básico.
Sebastião assentiu.
— E prenda-o bem. Corrente no pé. Se ele quiser cortar o próprio tornozelo pra fugir, que corte. Mas não irá longe com o sangue correndo.
Ernesto ergueu os olhos, mas não disse nada. Pereira então se virou, como quem não precisava ouvir desculpas ou bravatas. O castigo não estava no cárcere, mas no desprezo.
Na casa principal, Carla permanecia sentada no sofá da sala, o corpo ainda trêmulo, mas os olhos agora secos e atentos. O retrato de Antonietta continuava a encará-la, como se em silêncio lhe pedisse que fosse forte. Jandira já se preparava para deixar a sala quando Carla, com a voz ainda rouca, chamou:
— Jandira... Sente-se aí.
A mulher parou, surpresa. A voz da sinhá tinha um tom misturado: raiva contida, dor, mas também algo mais profundo, um pedido não dito.
Jandira hesitou antes de se sentar na poltrona de espaldar trançado à frente da sinhá. Endireitou a saia longa, cruzou as mãos no colo. O coração batia acelerado; temia o que Carla poderia perguntar.
— Conte-me tudo, disse Carla, encarando-a com os olhos escuros e firmes.
A respiração de Jandira travou por um instante. Sentiu como se os anos voltassem num só golpe. Os vinhedos, o galpão, a vergonha, o abandono. Sabia que aquele momento um dia viria. Mas não imaginava que seria com a sinhá, a menina que ajudara a criar, que agora era mulher, forte e ferida.
— Tudo, sinhá? murmurou.
Carla apenas assentiu, sem desviar os olhos.
Jandira apertou os lábios. Sim, tudo. O passado, as feridas, as verdades. As correntes, agora, não estavam apenas nos pés de Ernesto. Estavam ali, entre duas mulheres. E era hora de rompê-las.
A noite já ia alta quando Fortunato Costa chegou ao casarão. A grande casa de alvenaria, com suas janelas de madeira verde-musgo e paredes descascadas pelo tempo, parecia mais velha do que ele se lembrava. A varanda frontal ainda guardava as mesmas cadeiras de vime e o velho lampião pendurado na viga, lançando uma luz fraca sobre o alpendre.
André já o esperava ali, sentado com a camisa aberta no peito e o olhar perdido na escuridão da plantação que se estendia até onde os olhos não alcançavam.
— Pai... disse apenas, sem levantar-se.
Fortunato assentiu com a cabeça, sentando-se ao lado do filho com um suspiro que parecia carregar todos os anos que tinha vivido.
— Sabe, André... A vida cobra caro quando a gente decide esconder o que deve ser dito. Eu e dona Antonietta fizemos um trato. Um acordo de silêncio, há muitos anos... Era pra proteger, mas hoje vejo que só alimentamos o monstro.
André permaneceu calado, os olhos firmes no chão de tábuas da varanda. Sabia que o pai não esperava respostas, apenas queria se livrar do peso.
O silêncio voltou, denso.
André fechou os olhos por um instante. Pensava apenas em estar ao lado dela. Em dizer que não era como os outros Costas. Que ficaria, se ela permitisse.
Fortunato então retirou do bolso interno do paletó um velho envelope. Dentro, o acordo assinado por ele e Antonietta.
Sem dizer palavra, acendeu a chama do lampião e deixou o papel queimar até virar cinza.
— Chega de passado.
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No próximo capitulo a verdade vem a tona...