O cheiro amargo de cinza ainda pairava no ar, mesmo após dois dias do incêndio. As videiras queimadas exalavam uma melancolia muda, e o céu, carregado de nuvens densas, parecia compadecer-se daquela terra antes cheia de promessas. A frente do casarão não sofreu dano do fogo que queimou o armazém. Agora servia como espaço de interrogação improvisado. Do lado uma cadeira de palhinha ao centro, paredes descascadas, o ranger das tábuas sob os pés e um silêncio que pesava mais que mil palavras.
Jandira, de pé, vestia uma blusa de linho cru abotoada até o pescoço e uma saia escura que tocava os tornozelos. Seus olhos, negros como a noite sem estrelas, estavam injetados e imóveis. Parecia que sua alma já não habitava inteiramente ali.
Ernesto, com o paletó desalinhado e a gravata pendendo como corda frouxa, ousou romper o silêncio com um sorriso irônico.
— Então Pereira não te falou nada? Nem você, Jandira? a voz dele soava como um prego arrastando-se na madeira. Isso só confirma que, além de muito fossa, disse, usando o termo da época para mulher que sabe levar um homem à perdição da carne, também sabe guardar segredo. Carla olha para Jandira apenas ver sua reação.
O silêncio se partiu como vidro. O som seco da bofetada de Jandira ecoou pela sala. A cabeça de Ernesto virou-se com violência para o lado, e o rubor de sua face marcava o caminho exato por onde a mão dela passara. Uma gota de sangue tímida surgiu no canto de sua boca. Ele não a olhou. Mas sorriu.
— Você mudou, disse Ernesto com a voz baixa. Não é mais aquela menina de antes... Ernesto limpou a boca com o dorso da mão. Fitou-a por um instante, mas não disse mas nada. Seus olhos traziam um traço de deboche, mas também um cansaço profundo, o tipo de cansaço de quem já se entregou à própria ruína.
Do outro lado, onde permanecia em silêncio, o capaz Pereira deu um passo à frente, a mão já deslizando discretamente para a coronha da pistola à cintura.
— Basta, rosnou. Mais uma palavra contra ela e... Mas antes que pudesse concluir a ameaça, uma voz firme cortou o ambiente.
— Pereira, há muito aqui além da perda material, disse Carla, com a postura altiva de quem carrega mais do que um sobrenome de peso. Ela estava com seus cabelos presos por uma fita negra e um vestido de algodão azul-escuro, simples, porém elegante. Os olhos castanhos, profundos como os de uma estátua romana, estavam fixos em Ernesto com um misto de desprezo e pena.
— Eu o quero vivo. E bem preso, sua voz era de autoridade. Não se suja a honra de uma família com sangue desnecessário. Ele vai pagar com os dias que virão. Um a um.
Fez-se um silêncio quase reverente. Carla caminhou com lentidão até Jandira e segurou sua mão. O toque foi delicado, como o de uma irmã mais velha prestes a dividir um segredo.
— Sei que é tudo que você não quer fazer agora, Jandira, disse com suavidade. E vou entender se não o fizer. Eu mesma tenho vontade de esmaga os ossos dele. Mas há dores que se resolvem no tempo da Justiça, não no da vingança. Dê comida a esse desgraçado.
Jandira assentiu com um gesto breve, as lágrimas se formando mas contidas com altivez. Não choraria diante dele. Não mais.
A claridade do fim de tarde pintava as ruínas do armazém com tons de cobre. O vinhedo ao fundo, enegrecido pelo incêndio, parecia um cemitério de sonhos. Pereira, com o pistola, entre as mãos, aproximou-se mais uma vez.
— Sinhá Carla, os homens já foram chamar o senhor Costa. Deve chegar ainda hoje.
Carla não respondeu de imediato. Cruzou os braços, contemplando as videiras destruídas pela que ficavam próxima do armazém, como quem tenta ouvir as vozes do passado soprando por entre os galhos mortos.
— Que venha, disse por fim. E que veja o que a própria família fez.
Pereira, discreto, lançou um olhar de pesar à moça. Sabia que ela não se referia apenas ao incêndio. Sabia dos sussurros de traição, do passado enterrado que agora voltava à superfície com a força de um trem em desgoverno.
Ernesto, sentado e manietado por correntes improvisadas, ria baixo.
— Você não sabe de nada. Há coisas que nem o tempo apaga, nem a Justiça alcança.
Carla se aproximou então, devagar, com uma calma que mais assustava do que acalmava.
— Talvez. Mas há algo que você nunca entendeu, Ernesto, A voz dela era suave, quase maternal. Quem fere a terra que o alimenta, morre de fome antes do inverno chegar.
Ernesto se calou. Pela primeira vez, seus olhos hesitaram.
Carla sorriu, mas o sorriso não chegou aos olhos. Estava cansada. Não apenas pelas noites em claro ou pelas perdas que se empilhavam sobre seus ombros, mas pela amargura de saber que, às vezes, o sangue que corre entre as famílias é mais denso que qualquer vinho.
O entardecer já pintava o céu com pinceladas de ferrugem e púrpura, quando Carla, sentada olhando uns contratos que não daria mais certo, sentiu Jandira se aproximar em passos calmos, mas firmes. O silêncio entre elas não era vazio, era feito de lembranças veladas, de dores que, até então, nunca haviam sido postas em palavras.
Jandira aproximou-se em silêncio, os passos leves como os de quem carrega segredos há tempo demais. Sentou-se ao lado de Carla, mantendo as mãos sobre o colo, dedos entrelaçados como quem se sustenta na própria contenção.
— Posso te contar uma coisa que nunca contei a ninguém? disse ela, sem encará-la.
Carla apenas assentiu, o coração apertando dentro do peito com uma intuição silenciosa.
— Eu era só uma menina, Sinhá Carla. Tinha dezesseis anos quando fui trabalhar pra família Costa. Lavava roupas, varria o pátio, fazia o que me mandavam. E foi lá que ele... que Ernesto me notou.
A menção do nome fez Carla endurecer levemente os ombros. Mordeu o lábio inferior com força, contendo uma ira que nem sabia que já estava acesa.
— No começo era só palavra bonita, flor deixada no peitoril. Mas depois virou capricho, egoísmo, invasão. E eu, tola, achei que era amor. Até o dia em que disse que não queria mais. Que não era bicho, nem brinquedo.
Jandira fez uma pausa. O olhar fixo em algum ponto entre as parreiras escuras. A lembrança parecia doer como uma ferida aberta.
— Ele me chutou, Carla. Com a ponta da bota, no meio dos vinhedos. Rasgou minha roupa, me chamou de ingrata, me largou como se fosse lixo.
Carla levou a mão à boca, o peito arfando. As lágrimas vieram sem aviso, queimando os olhos como vinho velho. Ela não conseguia mais ouvir calada.
— E ninguém te ajudou?
Jandira balançou a cabeça, um sorriso amargo no rosto.
— Ninguém... até tua avó. Dona Antonietta aparecer ali, no meio da chuva, com um guarda-chuva torto e olhos firmes. Ajoelhou-se ao meu lado sem me perguntar nada. Me cobriu com seu xale, sujando a barra do vestido caro. E disse: “Aqui você floresce, menina. Aqui, ninguém te apodrece.”
Carla soluçou. As palavras da avó, a dignidade de Jandira, a violência de Ernesto, tudo misturava-se como um vinho tinto derramado sobre uma toalha branca.
— Eu nunca soube disso... murmurou Carla, com os olhos brilhando de dor e admiração.
Jandira pousou a mão sobre a dela, firme, com ternura.
— Tua avó confiava em mim, Sinhá Carla. Me ensinou a ser forte. E agora... é você quem carrega isso. Esse nome. Essa força.
Carla apertou a mão de Jandira com um nó na garganta. E soube, ali mesmo, entre as sombras das videiras e as luzes tímidas da varanda, que a lealdade também era passada de mulher para mulher, como as raízes profundas das uvas que resistem mesmo depois do fogo.
Lá fora, o som de cascos sobre o chão de terra indicava a chegada de alguém. Pereira olhou pela fresta da porta.
— É o senhor Costa.
Carla respirou fundo.
— Pois então, vamos ao que resta do que um dia chamamos de honra.
Ela saiu primeiro, com Jandira logo atrás, firme. Fez se um silêncio imediato, Ernesto pôde ver a chegada do homem que o ajudou quando anos atrás saiu de casa a mando de seu irmão. O homem que ajudaria ele a se vingar do seu próprio sangue..
A noite começava a cair, espalhando sombras longas entre as parreiras queimadas, e o vento trazia o cheiro do vinho derramado, o vinho da perda e da raiva. O velho Costa chegou em cima do cavalo preto, firme na sela como se ainda fosse um homem invencível, os bigodes grossos sujos de tabaco e olhos escuros como a terra.
— Muito bem, senhorita, disse, cuspindo ao lado da bota assim que parou diante dela. — Diga logo por que mandou me chamar. Ou a senhorita é jovem demais, ou burra o suficiente pra trazer um inimigo à sua porta.
O tom era de deboche e descaso. Chamá-la de “senhorita” soava mais como afronta do que respeito. Não havia nem sombra de deferência à mulher que agora comandava a propriedade que rivalizara com a dele por gerações.
— Senhor Fortunato Costa, respondeu Carla, firme, com o queixo elevado e o olhar penetrante. — Talvez seus o Senhor e seus homens desconheçam quem sou, mas aqui todos sabem que sinhá é como me chamam. E quem ousa me desrespeitar aqui, não o faz duas vezes.
Pereira, parado próximo, cruzou os braços com olhos preparados. Observava Carla com um misto de espanto e orgulho. Pensava consigo mesmo: “Ela mudou. Não é mais aquela menina... mas ainda é minha filha.”
— Pois bem, continuou Carla, a voz agora mais alta, sem tremor, vou direto ao ponto, pois o simples fato de ter dois Costas aqui hoje já me custa mais do que posso calcular. E quanto antes me livro de vocês, mais depressa terei paz.
Fortunato arqueou uma sobrancelha espessa, o cenho franzido pela menção. "Dois Costas?" Por um instante, pareceu ter levado um choque. Seus olhos buscaram algo no fundo do casarão, talvez temendo, ou esperando, ver seu próprio filho que a dias não o via desde que chegou de Nova York.
— Tive meu carregamento sabotado. E meu armazém, incendiado. Reduzido a cinzas. A raiva de Carla enchia o ar como pólvora. Uma vida inteira de trabalho apagada por uma tocha.
Fortunato soltou uma risada seca, arrastada.
— As notícias correm, sinhá... disse com gosto. E a desgraça também.
— Cale-se! esbravejou Carla. Não o trouxe aqui para zombar da minha dor.
Fortunato desceu do cavalo com lentidão calculada, a mão na fivela do cinturão, o olhar predador. Aproximou-se com o corpo ereto e a arrogância herdada de gerações de poder.
Pereira, atento, fez um gesto discreto, e quatro homens surgiram armados ao redor do velho Costa. Mas antes que qualquer passo fosse dado, Carla ergueu uma das mãos.
— Baixem as armas. Sua voz cortou o silêncio como um aço bem forjado.
Os homens obedeceram de imediato.
— Eu o trouxe aqui somente para dizer que "peguei o homem" que causou tudo isso. E ele pagará com a própria vida.
Fortunato deu um passo para trás, simulando surpresa.
— Que mal lhe pergunte, sinhá Carla... disse, com um sorriso torto e voz melosa, quase doce demais — Que Costa seria esse de quem fala? Porque lhe garanto: nenhum dos meus tenta ou tentará algo contra os Mancini. Foi um acordo firmado entre mim e... dona Antonietta.
Ao citar o nome da falecida matriarca, ele tirou o chapéu, baixando a cabeça em sinal de respeito genuíno.
Aquela lembrança mexeu com Carla. A imagem da avó forte, justa, generosa... viva nos olhos daquele que, ironicamente, sempre foi seu maior rival. Mas não bastava. Nada apagaria a dor do que passara.
— Ernesto, — disse por fim, com voz grave. Ernesto Costa. Ele é o responsável.
O velho Fortunato fitou-a por um longo momento... e então deu uma gargalhada profunda, como se tivesse ouvido uma piada vinda dos céus.
Subiu de novo no cavalo com a mesma calma de quem já sabia o final da história. E, antes de partir, fitou-a uma última vez.
— Você é igualzinha à sua vó. Determinada. Confiante demais pro próprio bem. O tom mudara, mais sombrio. Quanto a este Costa... pode matá-lo se quiser. Vai me poupar o trabalho de mandar alguém acabar com um Mancini.
Fez uma pausa.
— Ele é seu tio, sinhá Carla. Seu tio.
E desapareceu entre a penumbra das árvores, deixando para trás o cheiro de fumo, silêncio e uma revelação que agora ecoava entre as videiras como um grito enterrado há décadas.
---------------------------------------------------------------------
Só nos resta saber agora onde está e quem é Lilian...