Onde o fogo revela o passado, o ódio se curva à verdade e a força de uma mulher decide entre o gatilho e a história.
— Jandira! — gritou Carla, do alto de seu quarto, a voz embargada atravessando as paredes grossas da casa colonial, ecoando entre os móveis de madeira escura e o cheiro morno de alfazema que ainda pairava no ar.
Na cozinha, Jandira deixava o amassado de farinha crescer coberto sob um pano de linho, enquanto untava uma assadeira com banha. Ao ouvir o chamado, suspirou com impaciência e disse, em tom irônico, à cozinheira novata, Maria das Dores:
— Cuida disso aqui, menina. A sinhazinha deve ter dado de cara com outro ratinho assanhado querendo provar da mobília.
Enxugou as mãos no avental e subiu as escadas de madeira correndo que rangiam a cada passo, como se quisessem anunciar sua chegada. Já esperava encontrar a moça em cima de uma cadeira, aos gritos. Mas o que viu ao abrir a porta a desarmou por completo.
O quarto estava mergulhado num silêncio denso. Carla estava sentada no chão, entre a cama de ferro e um velho baú de couro desgastado. Os raios da tarde passavam pelas cortinas de renda, iluminando com doçura os objetos espalhados: cartas amareladas, broches antigos, retratos de bordas douradas.
— Sinhá... cadê o bicho? Eu vou dar fim nele, juro... — começou Jandira, puxando o lenço do bolso.
Carla se levantou devagar, como se as palavras pesassem mais que o próprio corpo. Com os olhos enevoados, virou-se para Jandira.
— Não tem bicho, Jandira... — disse com a voz abafada, carregada de algo que nem ela própria saberia nomear. — Não há bicho.
Estendeu a mão, e nela segurava uma folha dobrada, com a caligrafia familiar de sua avó. O nome Lilian D. Costa surgia entre rabiscos e anotações no velho diário de capa de couro.
— Há só isto, Jandira... — completou, deixando a folha cair sobre a colcha bordada. E então se sentou de novo, como quem perde o chão, o tempo e o fôlego — tudo ao mesmo tempo.
No terreiro da casa, o calor do sol batia seco sobre a terra avermelhada e os calcanhares rachados dos trabalhadores. O ar tinha cheiro de uva queimada e angústia, as cinzas do armazém ainda rodopiavam ao vento como lembrança da perda.
— E agora, o que a gente vai fazer? — perguntou Anacleto, um dos mais antigos trabalhadores, enxugando o suor da testa com o lenço sujo. Sinhazinha perdeu todo o carregamento, e as poucas caixas que escaparam nem dá pra completar o pedido de Seu Américo de Itu.
— Sossega, homi! — respondeu Dona Felícia, a mulher do leite, cruzando os braços sobre o avental. Quantas vezes faltou comida ou abrigo nessa terra? Alguma vez essa moça deixou a gente na mão? Sinhazinha é forte como a vó foi. Vai dar um jeito.
Mas outro, mais novo, sem a calma dos antigos, se adiantou, os olhos faiscando de nervoso:
— Que jeito? — disse alto demais. Se tudo que ela faz agora é se trancar no quarto, revirando papel velho e sonhando com aquele moço lá, o Costa...
Antes que completasse o pensamento, sentiu as argolas de sua camisa serem puxadas com força. Era Pereira Firmino, o capataz, homem de poucas palavras e pulso tão firme quanto os cipós que usava pra conter o gado.
— Você vai calar essa boca agora mesmo! — rosnou, olhos duros feito pedra. Sinhá Carla pode não ter a rigidez do pai ou a braveza da avó, mas não se engane. Essa casa ainda tem comando. E eu, homem feito e de respeito, sou a voz da ordem quando ela cala. Entendeu?
O rapaz assentiu, o rosto vermelho de vergonha. Pereira soltou-o com um empurrão seco, ajustou o chapéu e virou-se para outro trabalhador que se aproximava apressado.
— E Sebastião? — perguntou o capataz. Desde o incêndio que ninguém vê o desgraçado. Sumiu feito assombração.
Sebastião escutou de fora o berro de Pereira e já sabia que o clima não estava nada bem ali. Já se adiantou. —Perdão, senhor. Passei no casarão grande, a moça Maria das Dores disse que o senhor estava por aqui mesmo. Falou Sebastião tirando o chapéu com respeito. — Não vê que o curral tá parado e você sumiu?
— É que... — começou o homem, hesitante, logo que o fogo começou, eu e o José vimos um sujeito sair correndo lá por trás do armazém. Estranho demais. Fomos atrás pra ver quem era.
— E? — O capataz franziu a testa, impaciente. Não vai me enrolar. Diz logo o que descobriram, homem.
— A gente seguiu ele de longe, senhor... ele pulou cerca e entrou nas terras dos Costa. José achou melhor não arriscar, mas eu falei que tinha coisa errada. Ficamos espiando de longe, por entre os bambuzais.
Pereira já não respirava direito, o sangue fervendo nas têmporas.
— E viram o que, afinal?
— Hoje cedo ele saiu... tava se preparando pra fugir. A gente pegou ele, amarrou com as cordas de amassar cacho. Mas teve luta, senhor. Ele feriu o José com uma peixeira. Tá feio e eu conseguir trazer os dois numa mula que peguei dos Mezengas.
— Onde tá esse maldito?! — berrou Bento, já sacando o facão da cintura. Leva-me até ele, agora!
— É por aqui, senhor... a gente amarrou ele debaixo do rancho velho, onde era o galinheiro dos tempos da Dona Antonietta.
E todos seguiram em passos duros, pisando a terra como se ela mesma fosse cúmplice de algum segredo antigo, mais um, escondido entre os parreirais e as ruínas do fogo que nunca queimava só a madeira, mas também a confiança e as lembranças.
A luz da tarde filtrava-se pelas cortinas rendadas do quarto de Carla, dourando o pó suspenso no ar e os móveis antigos que ainda guardavam o cheiro da avó. Entre os baús abertos e papéis amarelados, Carla segurava nas mãos um retrato antigo, desbotado pelo tempo. Os olhos dela estavam marejados, e sua voz saiu embargada quando perguntou:
— Jandira... essa foto aqui, me diga quem é este homem... — apontou para a imagem com dedos trêmulos. Olha aqui, escrito atrás: Ernesto M. Costa — irmão de Lilian D. Costa. Veja... é a mesma letra que está neste bilhete dentro do caderno da minha avó. Quem são essas pessoas, Jandira?
A empregada, parada junto à porta, engoliu em seco. Suas mãos se apertaram no pano do avental, e os olhos buscaram refúgio nas frestas do assoalho. Carla continuava, agora sentada sobre a beira da cama, com o rosto confuso, dominado por sentimentos para os quais não tinha nome.
— Lilian D. Costa... Ernesto M. Costa... — repetia, quase em sussurro. Jandira, me diga quem são... por Deus, me diga!
Jandira respirou fundo, tomou coragem, e se aproximou da cama.
— A sinhá já leu o bilhete que o moço André lhe deixou antes de partir? — perguntou, a voz baixa, mas firme, como quem carregava segredos pesados demais por anos.
— Não... — respondeu Carla, ajeitando os cabelos com mãos nervosas. Não tive coragem.
O bilhete estava ali, perdido entre os papéis empilhados ao lado do travesseiro, como se também aguardasse o momento certo de revelar verdades. Carla o pegou com hesitação, mas não teve tempo de abrir.
A porta do quarto se abriu com força e uma voz ofegante soou:
— Sinhá! Me perdoe entrar assim... — disse Maria das Dores, quase tropeçando nos próprios pés. Mas é urgente!
— Acalme-se, menina! — disse Jandira, segurando-a pelos braços. Que susto é esse agora?
— É o Pereira, o capataz! — respondeu ela, em desespero. Ele foi lá pro galinheiro velho. O José tá caído no chão da casa, ferido de peixeira... o moço que botou fogo no armazém, o Sebastião achou... Pereira jura que vai matar com as próprias mãos!
O sangue fugiu do rosto de Carla, mas o olhar se acendeu com uma fúria antiga, herdada de gerações que aprenderam a se levantar em silêncio.
Sem dizer palavra, ela passou entre as duas como um raio e foi até a parede onde ainda pendia a cabeça de touro esculpida, presente de seu pai tempos antes. Abaixo do animal, envolta num pano bordado, repousava uma velha espingarda de cano longo.
Carla puxou a arma com força, estalando o cano com gesto treinado e olhos de tempestade.
— Esse maldito... — murmurou com os dentes cerrados. Eu mesma vou dar cabo dele.
Jandira quis segurar-lhe o braço, mas soube que seria inútil. O que agora queimava em Carla não era só raiva, era história. Era sangue.
— Sinhá! — tentou Jandira. Pelo amor de Deus, não vá assim! Pense no que seu pai faria!
Carla virou-se com a espingarda nos braços, olhos fixos pra Jandira.
— Meu pai me ensinou que nesta terra só se planta sonho se tiver coragem de regar com verdade. Hoje, Jandira, eu vim vou colher a minha verdade.
E saiu porta afora, deixando no ar o cheiro de papel antigo, o peso dos nomes Costa e Mancini... e o som seco da madeira do assoalho gritando sob os passos de uma mulher que não aceitava mais viver entre silêncios e cinzas.
O cheiro de madeira podre e palha úmida tomava o ar dentro do velho galinheiro. O sol filtrava-se por entre as frestas das tábuas mal pregadas, iluminando em faixas o pó que dançava no espaço abafado. Restos de ninhos antigos, galhos secos e penas esquecidas cobriam o chão, onde agora, amarrado com cordas grossas e sujo de sangue seco, estava Ernesto Costa, o homem que Pereira acreditava ser o causador de toda a ruína.
O capataz, de pé diante dele, suado e com a camisa aberta no peito, respirava como touro em dia de marcação. Os olhos vidrados, a mão trêmula no cabo do facão.
— Fale, seu maldito! — berrou Pereira, com voz de trovão. Por que tocou fogo no celeiro? Foi tu também que sabotou o carregamento das uvas da sinhazinha Carla?
Ernesto não disse uma só palavra. Sua cabeça caída para o lado, o sangue escorrendo da testa onde levara um golpe de coronha. O silêncio dele era mais cortante que qualquer resposta. Pereira já sabia: ele não falaria. Era um Costa. Um maldito Costa. E como tal, morreria ali.
O capataz ergueu o facão com ambas as mãos, o sol refletiu no fio da lâmina. Um segundo antes de desferir o golpe, ouviu a voz da Sinhá como jamais a ouvira antes, e aquilo paralisou até a própria lâmina do tempo.
— PEREIRA! — soou, potente, rouca de dor e revolta.
A porta do galinheiro rangeu com violência ao se abrir. Carla surgiu como um relâmpago entre as sombras. As botas de couro cobertas de poeira, o vestido escuro manchado de terra, os cabelos soltos e desgrenhados, e nas mãos, a espingarda de cano longo que antes pertencia ao pai. Seus olhos eram brasas acesas.
— Afaste-se. — ordenou, com voz firme, apontando a arma.
Pereira hesitou, mas obedeceu. Carla se aproximou do prisioneiro, olhando-o como se olhasse o próprio passado de sua família ali, amarrado e decadente, cuspindo sangue por entre os dentes.
— Esse maldito... — sussurrou, mais para si do que para os outros, não acabou apenas com meu celeiro.
Ela caminhou em círculos ao redor de Ernesto, como fera prestes a dar o bote, a espingarda firme, o rosto coberto por uma fúria que vinha de gerações.
— Lá... naquele celeiro... estavam mais que barris de uva e tonéis de vinho. — disse ela, apontando para o homem no chão. Ali havia histórias. Havia o suor do meu pai, o riso da minha mãe, a sabedoria da minha avó. Havia a esperança de famílias inteiras que trabalham nessa terra pra pôr o pão na mesa. Havia sonho... e herança.
Ela parou diante dele, encarando-o com o desprezo que só alguém ferido pela injustiça pode sentir.
— E tudo isso... você queimou com tanta frieza e pra quê? — Mas eu... eu não sou como você.
Pereira, ainda com o facão na mão, observava com olhos atentos. Sabia que sua Sinhá estava falando mais do que sobre fogo ou sabotagem. Ela falava de anos de dor engolida, de feridas herdadas, de luto que nunca teve nome.
O entardecer cobria a plantação em tons alaranjados quando Carla, ainda com a espingarda nas mãos, mirando o homem a frente. O ar estava pesado, carregado de poeira, suor e mágoas não ditas. O homem ali, amarrado, respirava com dificuldade, mas o peito ainda subia e descia com arrogância. O sangue dele não devolveria tudo que ela havia perdido, mas por um instante, parecia o único caminho possível.
Carla não conseguia mais suportar olhar nos olhos daquele homem. Tinha vontade de cuspir no chão toda vez que pensava em quantos contratos havia perdido, nas uvas jogadas ao chão, no carregamento sabotado. Mais ainda, na confiança dos trabalhadores, que agora sussurravam dúvidas por entre as paredes, e no nome de sua família, que sempre fora sinônimo de honra e trabalho.
Sentou-se por um instante no tamborete rústico encostado à parede do galinheiro. Olhou o facão ainda cravado na madeira. Pensou em seu pai. Em como ele jamais teria deixado aquilo acontecer. Pensou na avó, nas mãos trêmulas porém firmes que tantas vezes lhe ensinaram a fazer o sinal da cruz sobre as caixas de vinho antes da venda. Pensou que falhou. Que talvez não estivesse à altura do legado.
— Não... — sussurrou, levantando-se com raiva crescente. Não, seu maldito. — seus olhos eram chamas vivas. — Você tirou tudo de mim. Destruiu o que era meu por direito. Roubou meu sustento, meu nome, minha paz!
Ajoelhou-se diante dele, segurando a espingarda com as duas mãos, o cano tremendo de tão apertado. O suor descia-lhe pelas têmporas, mas o coração parecia já ter se transformado em pedra.
— Eu devia te matar agora mesmo... — disse entre os dentes cerrados, os olhos úmidos de fúria. — Não há lei que me convença do contrário. Você não merece viver!
Ergueu a espingarda. O dedo tateou o gatilho. A voz saiu de dentro dela como um trovão:
— Morra, desgraçado!
— SINHÁ CARLA, PARE! — gritou Jandira, com os olhos arregalados e a respiração entrecortada.
A porta do galinheiro bateu contra a parede. Carla, em choque, hesitou com o dedo no gatilho. Jandira atravessou o espaço correndo, o vestido alçando poeira e os cabelos desalinhados. Em suas mãos, um retrato amarelado.
— Veja isto... — disse Jandira, com a voz embargada, aproximando-se com cautela, como se se aproximasse de uma criança prestes a cair do abismo.
Carla olhou a fotografia com raiva, ainda trêmula. Era o mesmo retrato que ela havia encontrado dias antes entre os papéis da avó. O rosto do homem — Ernesto — mais jovem. Ao lado, uma mulher de traços finos, olhar doce. Lilian D. Costa. E atrás, escrito com caligrafia delicada: "Para Ernestinho, meu irmão querido. Que nunca te falte luz, mesmo nas sombras."
Carla sentiu o chão ceder. A espingarda escorregou de suas mãos e caiu com um baque surdo no chão de terra. Deu um passo para trás. Depois outro.
— Ele é o irmão da Lilian... — murmurou, como se apenas agora estivesse compreendendo a complexidade da história, os fios invisíveis que uniam passado e presente.
Jandira assentiu em silêncio, guardando a fotografia com reverência.
— E a senhora... é mais do que isso. — disse, firme.
O galinheiro ficou em silêncio. Ernesto, ferido, olhou Carla com olhos fundos. Não disse nada. Pela primeira vez, Carla viu nele não apenas o inimigo dos negócios, mas um fragmento da história que desconhecia — e talvez, ainda precisasse entender.
— Então você não sabe de nada. — depois de horas Ernesto fala. — Pereira nunca lhe contou nada, E Jandira também lhe disse a verdade que escutara de sua avó. Foi tudo que se ouviu até Pereira silencia-lo com um golpe na cabeça.
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No próximo capitulo as revelações e o destino de Carla e André