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CAPÍTULO V

Cinzas, Segredos e uma Chuva Tardia

 

Jandira picava cenouras frescas colhidas no quintal quando o grito de sua sinhá a fez derrubar a faca no chão de terra batida. O coração disparou no peito. Limpou as mãos no avental de linho e correu pela casa até alcançar o antigo escritório do falecido doutor Mancini.

 

Ao entrar, viu Carla sobre a escrivaninha, os olhos arregalados de puro pavor, uma das mãos tremendo em direção ao chão. “Mata, Jandira, mata! Ele vai me comer!”, gritava, desesperada, em total descontrole. Um suor frio lhe escorria pela testa.

 

Jandira, confusa, seguiu o olhar da moça. Debaixo da mesa, um pequeno rato, franzino e inofensivo, se deliciava com uma lasca de queijo caído. Sorriu em silêncio. Sabia que na juventude das sinhás, medos tomavam forma de monstros.

 

Com delicadeza, pegou uma escumadeira de ferro que estava perto da lareira e, com um leve movimento, espantou o ratinho para fora, rindo baixinho. “Sinhá, num era bicho nenhum que comesse gente... era só um ratim magricelo atrás de quitute.”

 

Carla desabou na cadeira. A tensão cedeu espaço a um riso nervoso e, aos poucos, à vergonha. Passou as mãos no rosto, tentando recompor-se. “Jandira, se papai visse isso, diria que perdi o juízo por completo...”

 

“Perder o juízo é coisa de quem se deita no mundo sem amarras, sinhá. A senhora só se assustou, isso é tudo.” E, mesmo em meio ao susto, Jandira sabia: aquele dia ainda traria mais tremores.

 

Na cozinha, com a chaleira de ferro no fogo e os biscoitos sendo tirados do forno, Carla tomou um gole de chá e virou-se para o capataz. “Pereira, me diga logo... O que houve com o carregamento que ia pra cidade?” Sua voz era firme, mas o olhar suplicava por verdade.

 

“Não há nada de novo, sinhá...”, respondeu ele, cabisbaixo. Mas os olhos fugiam para Jandira, e Carla percebeu de imediato. “Pereira, conte logo o que tenta esconder.” O homem hesitou, torcendo o chapéu nas mãos.

 

“Diga logo, homem!”, cortou Jandira num tom seco, como quem não aceita engano. Pereira respirou fundo e ia falar quando gritos vindos do lado de fora cortaram a conversa como faca em fruta madura.

 

“Sinhá! Sinhá!” Era um dos jovens ajudantes. Carla correu até a varanda e parou, imóvel. A frente de sua propriedade estava tomada pela fumaça. Um incêndio consumia o antigo depósito onde os barris eram guardados.

 

As chamas devoravam o armazém de madeira, erguido por seu pai há décadas. Os trabalhadores tentavam conter o fogo com baldes d’água, mas o estrago já era grande demais. Carla sentiu os joelhos falharem, mas se manteve de pé.

 

Do outro lado da cidade, no porto de Santos, André observava o mar recortado pelas embarcações. O sol poente tingia o céu de laranja. “Rápido, me leve pra casa. Preciso descansar. Mas diga, você entregou o que pedi?”, disse ao cocheiro que o acompanhava.

 

“Sim, senhor. Entreguei em mãos. Mas... a moça foi até o casarão dos Costa atrás do senhor. Achei perigoso.” André franziu o cenho. “Ela foi lá?” O cocheiro assentiu. “Creio que ela tenha sentimentos verdadeiros, senhor.”

 

André olhou o horizonte com olhos cheios. “Ela pensou que eu estava no Titanic?” O homem assentiu de novo. André sentiu o peito se encher de um calor inesperado. “Então ela se importa…”, sussurrou. “Vamos. Leve-me pra casa.”

 

No casarão de Carla, ela avançava em direção ao que restava do armazém. As paredes carbonizadas rangiam como suspiros do passado. Os homens seguiam combatendo as últimas labaredas. Ela lembrou das palavras de seu pai: “Meu trabalho é meu legado, todo o resto é sombra.”

 

“Pereira, mande todos pararem.” O capataz hesitou. “Mas, sinhá, o fogo ainda—”. “Mande parar!”, gritou Carla, os olhos faiscando. Ele obedeceu. Carla sentou-se nos degraus da entrada da casa. Ali ficou, imóvel, até a última cinza cair.

 

Cada fragmento de madeira calcinada era um pedaço de história. Da infância, dos sonhos com o vinho próprio, dos planos que fazia sozinha nas madrugadas. Tudo agora era poeira e cheiro de fumaça. Jandira sentou ao seu lado, em silêncio.

 

A chuva veio, mansa. Começou tímida, depois engrossou. Os homens correram a salvar o que podiam. Carla apenas ergueu os olhos. Era como se a natureza tentasse limpar a dor com água. Mas não havia água que lavasse tanta perda.

 

Na manhã seguinte, André foi chamado ao gabinete do pai. O patriarca, severo e altivo, examinava papéis e mapas de exportação. “Então? Como foi em Nova York?”, perguntou, cheio de expectativa.

 

André pigarreou. “Pai, aprendi muito. Os americanos investem em irrigação subterrânea, controlam a acidez do solo com precisão. O clima exige estufas temporárias. O custo é alto, mas o rendimento dobra em dois anos.”

 

O pai arqueou as sobrancelhas. “E os custos?” “Sim, são maiores. Mas o lucro a longo prazo compensa. Precisaríamos de maquinário, talvez buscar parceria com investidores estrangeiros.” O pai assentiu, satisfeito.

 

No casarão dos Mancini, o dia amanheceu com o cheiro das cinzas ainda no ar. Carla saía da cozinha quando viu Pereira. “Por que não me contou logo que o armazém estava pegando fogo?” Sua voz era cansada, porém firme.

 

Pereira abaixou o olhar. “Me perdoe, sinhá... mas não era isso que eu ia lhe contar...” Carla franziu o cenho. “Então o que era?” Antes que ele pudesse responder, Jandira segurou o braço da moça.

 

“Deixe, Pereira. Eu mesma contarei o que precisa saber.” O capataz assentiu, aliviado, e se afastou. Carla olhou a mulher que a criou com olhos duros. “Se é sobre minha avó... quero saber tudo. Sem mais rodeios.”

 

Jandira olhou o céu cinzento pela janela. “Nem todo segredo envelhece bem, minha menina. Mas alguns precisam ser contados antes que apodreçam em silêncio.” Carla sentiu o frio nas mãos. O tempo das meias-verdades estava no fim.

 

E naquele fim de manhã, entre os estalos da madeira úmida e os soluços da terra molhada, a história de Lilian Delmont começaria a se revelar.

 

 

 

A Sales
Enviado por A Sales em 07/06/2025
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