A colheita começara cedo naquele ano. Os parreirais de Carla transbordavam em tons de púrpura e verde, e o aroma doce das uvas maduras envolvia o casarão e seus arredores como um véu de promessas. Ela caminhava entre as fileiras, o chapéu sombreando os olhos atentos e a saia erguida com elegância sobre o barro. Ao seu redor, homens e mulheres trabalhavam com afinco, respeitando não apenas sua liderança, mas sua bondade. Carla não era patroa comum. Sabia os nomes dos filhos de cada lavrador, perguntava pelas dores dos mais velhos e, vez ou outra, repartia com eles o vinho da safra anterior.
Naquela manhã, após dar instruções sobre o transporte das caixas, Carla voltou ao casarão. Encontrou Jandira, sua criada de confiança, preparando pães para os trabalhadores. Sentou-se ao banco da cozinha e tirou do bolso o caderninho da avó. Mostrou à mulher o nome que tanto lhe causava inquietação: "Lilian Costa". Jandira leu, hesitou por um segundo e sorriu com doçura.
— Nome bonito, né, sinhazinha? — disse, pegando uma garrafa de vinho. — Esse aqui ainda é da última safra que sua mãe engarrafou. Vai bem com um pouco de silêncio.
Carla apertou os lábios, desconfiada. Jandira sabia mais do que dizia, mas disfarçava com a arte de quem fora treinada por anos de serviço e lealdade. Pegou o copo, agradeceu e não insistiu. Sabia que a verdade viria quando estivesse pronta para ser colhida, como as uvas.
Após um dia inteiro sob o sol, Carla trocou as botas cheias de terra, lavou o rosto e vestiu um xale escuro. A noite caía morna, e havia uma urgência nova em seus passos. Pegou o caderno da avó e, com ele nas mãos, rumou em direção ao casarão dos Costa. Queria falar com André, confrontar aquele nome, descobrir por que seu pai, Enzo Mancini, também aparecia escrito nas páginas.
Mas antes que pudesse bater à porta principal, foi abordada por um homem alto, de paletó escuro e chapéu desbotado. Trazia no rosto a expressão de quem carregava o peso de uma notícia grande demais para ser dada de qualquer jeito.
— A senhorita é Carla Mancini? André Costa embarcou no Titanic. Soube que você iria para Nova York, ele ia lhe fazer uma surpresa na viagem.
O tempo congelou. A boca de Carla abriu-se, mas não houve som. As mãos perderam a firmeza, e o caderno da avó caiu sobre o chão, espatifando as folhas contra o vento que passava. O homem tentou segurá-la, mas ela já estava sentada sobre os joelhos, os olhos fixos no chão como se ali estivesse enterrado o próprio André.
— Ele estava naquele navio? Mas... eu deveria estar lá também. Ele sabia?
O homem não respondeu. Apenas retirou do bolso uma pequena carteira e entregou-lhe um bilhete, amassado e com cheiro de sal. A letra era familiar. Carla não quis ler. Ainda não. O mundo, naquele momento, havia perdido todo o som.
Com delicadeza, ele a ajudou a se levantar. Conduziu-a até o casarão de seus pais, mas ao se aproximarem, os trabalhadores vieram correndo. Um deles, indignado, segurou o homem pelo braço.
— O que pensa que está fazendo com a sinhazinha? Mais uma das tramoias dos Costa?
Antes que algo pior acontecesse, Carla ergueu a voz, firme mesmo em meio ao desespero.
— Ninguém toca nele. Ele veio apenas me acompanhar devido já ser tarde. Por favor, deixem-no partir em paz.
A multidão hesitou, mas obedeceu. O homem ajeitou o chapéu e partiu sem olhar para trás. Carla subiu lentamente os degraus da varanda, o coração ainda tentando entender o que a razão recusava aceitar. Dentro de casa, o burburinho era inevitável.
As criadas cochichavam: — "Mataram o moço..."
— "Ele ia se declarar..."
— "Foi o destino... ou castigo..."
Carla ignorou os rumores. Subiu para o quarto, trancou a porta e se sentou à beira da cama. Pegou a caixa onde guardava os bilhetes e os lenços de André. Um a um, espalhou-os sobre a colcha. Leu cada frase, cada verso.
Ali estavam todas as palavras que nunca foram ditas em voz alta. As promessas contidas, os silêncios repletos de intenção. Era um amor escrito com medo, mas sentido com toda a coragem que se pode ter.
Carla chorou. Não como quem perde. Chorou como quem reconhece que foi amada.
Ela pegou o bilhete ainda fechado, não tinha coragem pra ler, temia ainda mais saber que ele partira sem que ela tivesse a chance de saber quem era Lilian Costa.
Da janela ela contemplou a estrela guia e som da chuva que agora caia e ela adormeceu.
________/_______/_____/_____/________
Continua...
O que será que André escreveu no bilhete?
Fim do Capítulo III.