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O Encontro na Cidade Luz

 

  Paris sempre teve fama de ser o berço dos amantes, mas para Helena, uma brasileira de 29 anos recém-formada em História da Arte, a cidade era mais do que um cenário romântico. Era um sonho cultivado desde a infância, regado por livros de Monet, Renoir e as aulas que sua mãe dava em uma escola pública de São Paulo. Quando conseguiu a bolsa de estudos no Musée d'Orsay, achou que era apenas o início de uma carreira. Mal sabia ela que Paris também escreveria uma parte decisiva da sua história pessoal.

  Chegou em setembro de 2016, numa manhã fria de céu claro. O outono parisiense pintava as folhas com tons dourados, e a cidade exalava uma beleza silenciosa que fazia tudo parecer possível. Hospedou-se em um pequeno apartamento no Quartier Latin, com paredes de pedra e janelas que rangiam ao abrir. Tudo parecia um cenário de cinema. Inclusive ele.

  Pierre era arquiteto. Francês, nascido em Lyon, vivia em Paris desde os tempos da faculdade. Tinha um jeito discreto, mas falava com intensidade quando o assunto era arte e urbanismo. Eles se conheceram durante uma visita guiada que Helena coordenava para estudantes estrangeiros no museu. Ele não estava na lista, entrou por acaso, curioso. Ao fim da visita, foi o único que ficou para fazer perguntas.

 O primeiro olhar entre os dois não teve fogos de artifício, mas teve tempo. Um tempo que se sustentava no silêncio confortável entre uma resposta e outra. Enquanto Helena explicava sobre Degas, Pierre a observava como quem ouve uma sinfonia. Havia algo na forma como ela gesticulava ao falar das pinceladas — um amor genuíno que lhe pareceu familiar.

 Ele voltou ao museu dias depois, sem dizer que era por ela. Desta vez, se encontrou com ela no café do térreo. Ofereceu-lhe um expresso e um sorriso que escondia timidez. A conversa durou mais do que deveriam. O tempo passou sem pressa, como se o relógio estivesse preso em alguma moldura impressionista.

 Helena não era de se apaixonar fácil. Tinha vindo para Paris determinada a manter o foco. Mas algo em Pierre a desconcertava: sua capacidade de escuta, seu francês que às vezes misturava inglês, e a forma como falava de sua avó, sobrevivente da ocupação nazista. Os dois começaram a se encontrar cada vez mais — uma exposição aqui, uma livraria ali, um passeio pelo Sena sem compromisso.

 Em novembro, o frio apertou e, com ele, veio o primeiro beijo, tímido e intenso, sob a neblina da Pont des Arts. Não houve declarações. Só o toque dos lábios e o calor que, por um instante, fez esquecer a estação.

 O relacionamento cresceu como Paris à noite: devagar, luz por luz. Eles partilhavam um amor pela arte, pela literatura e pelo silêncio confortável. Ele apresentava a ela os mercados locais, os melhores cafés de bairro, os parques escondidos. Ela o levava para os becos onde os grafites contavam histórias de revolução. Era um amor entre descobertas.

 Apesar da diferença cultural, pareciam encaixar. Pierre era reservado, quase metódico. Helena era leve, mas firme. Ela o ensinava a rir de si mesmo. Ele a ensinava a desacelerar. Juntos, encontraram um equilíbrio que parecia raro.

 Mas Paris não era apenas feita de cafés e beijos. Era também uma cidade de contrastes, de burocracia pesada e preços altos. Helena, apesar da bolsa, sentia o peso financeiro crescer. Trabalhar no museu era uma honra, mas o salário não cobria tudo. Pierre ofereceu ajuda, mas ela recusava — orgulhosa, como aprendeu com a vida.

 A relação começou a mudar sutilmente com o passar dos meses. As primeiras divergências vieram com o inverno, quase imperceptíveis, como rachaduras no reboco de um prédio antigo. Não era nada grave: uma frase atravessada, uma ausência não explicada, um ciúme sutil que Pierre tentava disfarçar.

 Helena percebia que, aos poucos, ele deixava de rir das mesmas coisas. Ela se irritava com a forma como ele falava sobre o Brasil — mesmo sem intenção, os comentários vinham carregados de condescendência. Ele, por sua vez, sentia que ela idealizava Paris como um refúgio, e não como uma realidade com falhas.

Ainda assim, havia amor. Ou pelo menos algo muito parecido. Eles tentavam ignorar os ruídos. Helena dizia a si mesma que todo relacionamento tem fases. Pierre, racional, preferia fingir que tudo estava sob controle. Mas a cidade, com sua pulsação constante, parecia já prever o fim.

 Em janeiro, durante uma greve geral que paralisou o transporte público, passaram dois dias trancados no apartamento. Foi quando tiveram a primeira grande discussão. Sobre o futuro. Ele queria estabilidade, talvez voltar a Lyon e abrir seu próprio escritório. Ela queria ficar em Paris, tentar um mestrado, ver até onde poderia ir com a arte.

 Não houve gritos. Apenas palavras duras, e longos silêncios entre elas. Ela dormiu no sofá. Ele ficou olhando pela janela, os trilhos vazios da linha 4 como símbolo de algo que não se movia mais entre eles.

 Os dias seguintes foram estranhos. Continuavam se vendo, mas havia hesitação nos gestos. O beijo perdeu a espontaneidade. Os cafés ficaram mais curtos. As conversas mais seguras, como quem anda sobre vidro.

 

 Helena tentava se agarrar às lembranças do início: os passeios em Montmartre, as fotos em preto e branco na feirinha da Rue Cler, as tardes no jardim de Luxemburgo. Mas elas vinham misturadas a uma dor recente. A dúvida crescia como um visitante indesejado.

 Pierre se refugiava no trabalho. Passava mais tempo em reuniões e projetos. Chegava tarde. Dizia que era cansaço. Helena acreditava, mas sentia que era outra coisa: medo. Medo de enfrentar o que os dois já sabiam, mas ainda não tinham coragem de admitir.

  Em fevereiro, ela recebeu uma proposta para dar uma palestra sobre arte latino-americana em Lisboa. Foi quando percebeu que talvez estivesse pronta para partir. Não por falta de amor, mas por amor a si mesma. Não contou imediatamente a Pierre. Queria saber se ele ainda lutaria por eles.

  Ele não percebeu. Ou fingiu não perceber. Quando ela lhe contou, respondeu com um sorriso educado. Disse que seria ótimo para a carreira dela. Mas não perguntou quando voltaria. Não prometeu esperar.

  Na semana antes da viagem, tentaram reviver o começo. Voltaram ao museu, tomaram o mesmo café, tiraram novas fotos na Pont des Arts. Mas era como se estivessem interpretando um papel que já não lhes cabia.

  Na última noite em Paris, caminharam juntos pela Île de la Cité. A catedral de Notre-Dame ainda em restauração, coberta por andaimes, parecia uma metáfora viva do que restava entre eles: algo que um dia foi belo, agora coberto por feridas, esperando por reconstrução.

  Sentaram-se num banco. Ela com as mãos no bolso. Ele, olhando para o Sena. O vento cortava, mas nenhum dos dois parecia se importar. Não disseram “adeus”. Não disseram “eu te amo”. Apenas um silêncio pesado, cheio de significados que nenhuma palavra alcançaria.

 Helena chorou sozinha, no quarto, enquanto dobrava as roupas. Guardou os bilhetes de metrô, o marcador de página que ele desenhou, a foto deles na frente do Louvre. Guardou como quem sabe que não vai voltar.

 Quando embarcou para Lisboa, Pierre não estava no aeroporto. Mandou uma mensagem breve: “Te desejo tudo de melhor. Você vai brilhar.” Ela leu e não respondeu. Não porque não sentia, mas porque não sabia como dizer “adeus” sem quebrar de vez.

 Em Lisboa, falou sobre arte com eloquência. Foi aplaudida de pé. Mas ao voltar para o hotel, chorou no travesseiro. Pela cidade, pelo amor, e por tudo que Paris lhe deu — e tirou.

 Enquanto isso, Pierre começou a reorganizar os livros na estante. Encontrou um desenho dela, escondido entre dois volumes de Le Corbusier. Guardou-o na carteira, sem saber por quê. Talvez um dia entendesse.

 Os dias seguintes seguiram como uma nova estação. A primavera se anunciava em Paris. As cerejeiras começaram a florescer no Parc de Sceaux. Mas Helena já não estava lá para ver.

 Alguns dizem que a cidade é a mesma, não importa quem a viva. Outros acreditam que cada amor transforma o lugar. Helena, mesmo distante, sabia: Paris nunca mais seria a mesma.

 O que houve entre ela e Pierre não cabia nas molduras dos museus. Era mais próximo de uma colagem — pedaços bonitos e cortes dolorosos, formando uma imagem única.

Nem ela sabia se era amor o que ficou. Mas sabia que o que viveram tinha a delicadeza de uma aquarela — bela enquanto durou, mas frágil demais para o tempo.

 Helena voltaria a Paris outras vezes, anos depois. Caminharia por aquelas ruas como se revisitasse uma antiga casa. Saberia onde cada riso aconteceu, onde cada lágrima caiu. Pierre seguiria com a vida. Teria outros relacionamentos, outras conversas. Mas sempre que passasse pelo museu, olharia para o café do térreo e lembraria dela.

 Porque há encontros que duram uma vida inteira, mesmo quando terminam. E há amores que não foram feitos para ficar, mas para ensinar. Helena aprenderia que amor não é insistência. É escolha. E que às vezes, a maior prova de amor é deixar ir. Pierre entenderia que amar alguém é mais do que dividir o espaço. É querer dividir o tempo — e o futuro.

 Paris, como testemunha silenciosa, guardaria os passos deles entre as vielas, os suspiros entre as folhas de outono. E o amor que ali floresceu, mesmo que breve, seria eterno em suas memórias — como tudo que acontece quando a alma está desperta.

“Adeus em Paris” não foi um final. Foi o ponto exato onde dois caminhos se cruzaram com beleza e dor. E mesmo separados, para sempre se lembrariam: havia um tempo em que tudo fazia sentido, ali, entre as luzes da cidade que nunca dorme.

 

 

Continua...

 

A Sales
Enviado por A Sales em 06/05/2025
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