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O Peso da Sobrevivência

 

 Os dias seguintes ao ataque a Nagasaki mergulharam Kokura numa espécie de letargia inquieta. Havia um silêncio que não era o mesmo de antes — era um silêncio cheio de olhos abertos demais, de mãos que hesitavam no meio de um gesto, de sussurros que terminavam em suspiros. Como se toda a cidade respirasse fundo, mas não soubesse se deveria soltar o ar.

 

 No hospital, os corredores pareciam mais longos. As conversas, mais curtas. O rádio tocava canções antigas entre uma transmissão censurada e outra. Aiko andava com passos suaves, quase como se não quisesse perturbar o equilíbrio precário daquela paz inesperada. Era como viver no intervalo entre dois trovões.

 

 Ela passava mais tempo com Haruki agora. Não por obrigação profissional, mas por uma força invisível que a atraía para aquele leito de olhos escuros. Havia nele uma serenidade desconcertante, como quem já não se espanta com a proximidade da morte — e que, por isso mesmo, valoriza cada instante de vida.

 

 Na tarde do dia 12, Aiko trouxe um pouco de chá escondido em uma garrafa de metal. Serviu duas xícaras improvisadas com tampas de vidro. Haruki aceitou com um leve movimento de cabeça. Bebeu devagar, como se cada gole fosse uma forma de agradecer por estar ali.

 

 — Encontrei isto no fundo da gaveta do armário da enfermaria — disse ele, com voz rouca, estendendo um pequeno pedaço de papel amarelado. — Um dos meninos escreveu antes de ser transferido para Hiroshima.

 

 Aiko pegou o papel e leu o haicai em voz baixa:

 

 Brisa da manhã 

um pardal entre escombros

canta como sempre.

 

 Ela sentiu a garganta fechar. Aquele poema de três versos dizia mais do que muitos relatórios médicos. Era simples, e por isso mesmo, tão devastador. A ideia de algo frágil — um pardal — entre os restos de uma cidade destruída, ainda assim ousando cantar... Era como o próprio Haruki, como ela, como Kokura inteira.

 

 — Ele... sabia? — perguntou Aiko, dobrando o papel com cuidado.

 

 — Sabíamos todos. Não com palavras, mas com os olhos. Com os silêncios entre as marchas e os alarmes. — Haruki a olhava de um modo que fazia Aiko querer se esconder e permanecer ali ao mesmo tempo.

 

 Naquela noite, Aiko não dormiu. Sentou-se na varanda dos fundos do hospital, olhando para o céu onde antes as nuvens haviam salvado a cidade. Agora estavam limpas. Ironia. Pela primeira vez em semanas, o céu estava claro, e ela não sabia se isso a tranquilizava ou assustava.

 

 O haicai voltava à sua mente. Pardais cantando entre escombros. Seria ela um desses pardais? Teria direito de cantar? Ou era apenas sobrevivente de um destino que não a escolheu, mas a deixou viva?

 

 Na manhã seguinte, Aiko chegou mais cedo ao quarto de Haruki. E pela primeira vez, ela falou sem roteiro:

 

 — Você tocava shamisen, não é? Se um dia puder tocar de novo... me deixe ouvir.

 

 Haruki sorriu com os olhos. Pequeno, mas cheio de sol. Um pardal, talvez. Cantando.

 

 E Aiko sentiu, pela primeira vez, que ainda era possível existir alguma música depois da bomba que não caiu.

A Sales
Enviado por A Sales em 17/04/2025
Alterado em 17/04/2025
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