O Silêncio Antes da Nuvem
Kokura, Japão. Agosto de 1945.
O verão se derramava quente sobre a cidade. As cigarras cantavam como se quisessem competir com o zunido distante dos aviões que, vez ou outra, cruzavam o céu. As ruas de paralelepípedos da região central fervilhavam com o vai e vem de bicicletas, soldados em licença e donas de casa carregando cestos de arroz, vegetais e esperança. Havia escassez, é verdade, mas também havia a obstinada rotina dos que se recusavam a abandonar a vida, mesmo com a guerra tentando apagá-la.
As casas de madeira com telhados de telha preta formavam um labirinto de becos estreitos, onde crianças ainda brincavam com piões e bonecos de papel, ignorando o mundo em colapso ao redor. No pequeno templo xintoísta ao sul da cidade, velhos retiravam os sapatos e faziam orações silenciosas, suas mãos enrugadas tremendo ao baterem palmas para chamar a atenção dos kami. Cada reza era uma suplica pela sobrevivência dos filhos, dos netos, dos amigos em Hiroshima, de si mesmos.
No alto da colina que dominava a parte leste de Kokura, erguia-se o Hospital Militar de Kokura. O prédio, em madeira escurecida pelo tempo e pela fuligem da guerra, mantinha ainda um ar de dignidade. Foi ali que Aiko Takahashi, enfermeira de vinte e três anos, passava a maior parte dos seus dias. Seus passos eram firmes, mas o olhar denunciava um cansaço que não vinha só das longas jornadas, e sim do peso acumulado das perdas.
Ela caminhava pelos corredores como quem atravessa um campo minado emocional. O cheiro de éter, sangue e pomada misturava-se ao aroma do chá verde que ocasionalmente algum colega trazia escondido. No leito 14, estava Haruki Watanabe. Soldado ferido em combate, trazia um silêncio diferente dos demais. Não era só a dor física que o prendia ali. Era o olhar fixo no teto, como se revivesse cenas que sua boca não ousava descrever.
Haruki tinha vinte e seis anos e uma alma que parecia ter vivido o triplo. Suas mãos, outrora habilidosas com o shamisen, estavam enfaixadas, queimadas, partidas por estilhaços. Aiko o observava de longe, no início, temerosa de atravessar aquele muro invisível. Mas com o tempo, palavras simples foram abrindo brechas: “Água?”, “Como está se sentindo hoje?”. E Haruki, aos poucos, respondia.
Do lado de fora, os boatos corriam. Hiroshima havia sido destruída por uma “bomba diferente”. Mas ninguém sabia ao certo. O governo censurava informações, o rádio falava de rendição, mas também de vitória. Nas padarias, senhoras cochichavam. No hospital, Aiko escutava fragmentos de conversa entre médicos e oficiais.
Naquela manhã de 9 de agosto, o ar estava denso, abafado. O sol tentava romper a camada espessa de nuvens cinzentas que encobriam Kokura. Uma bruma irregular se espalhava sobre os telhados, escondendo o que viesse do céu. Ninguém imaginava que, naquele momento, um bombardeiro americano voava a mais de nove mil metros acima da cidade. Dentro dele, a segunda bomba atômica da história.
O Bockscar circulou sobre Kokura por mais de quarenta minutos. A tripulação tentava encontrar o arsenal visado. Mas a fumaça, vinda de bombardeios recentes em Yawata, e as nuvens persistentes tornavam a visão impossível. A decisão foi tomada: seguir para o alvo secundário, Nagasaki.
Aiko, naquele instante, preparava uma compressa. Haruki lia um pequeno haicai escrito por um colega de leito:. O som de avião, ainda que abafado, fez alguns pacientes olharem para o alto. Mas ninguém correu. Ninguém gritou. A bomba que nunca veio, deixou um silêncio profundo em seu lugar.
Na sombra da dor
florescem sonhos de outrora
no silêncio, paz.
O som de avião, ainda que abafado, fez alguns pacientes olharem para o alto. Mas ninguém correu. Ninguém gritou. A bomba que nunca veio, deixou um silêncio profundo em seu lugar.
Mais tarde, já à noite, chegaram as primeiras notícias: Nagasaki havia sido atingida. Uma cidade inteira, em chamas. Os olhos de Aiko encontraram os de Haruki. Ambos sabiam que algo terrível os havia roçado e seguido em frente. Um desvio de rota. Uma nuvem. Uma chance.
Naquela noite, Kokura dormiu envolta em um estranho misto de alívio e angústia. E em algum lugar do coração de Aiko, uma pergunta sem resposta começava a brotar: por que nós não?
E ali, sem que percebessem, nascia uma história não apenas de sobrevivência, mas de amor plantado no solo incerto entre o acaso e a tragédia.
Continua...